Ler romances policiais e aprender a distinguir justificações de circunstâncias para melhor compreender o que se passa no mundo


A responsabilidade e a justificação dos factos criminais são sempre, de algum modo, relativamente autónomas das circunstâncias em que eles ocorrem.


Nestes dias sombrios de guerra, começa a ser penoso abrir a televisão.

Aos bombardeamentos televisionados quase em direto, somam-se os constantes bombardeamentos doutrinários dos opinion makers e dos relatos, em estilo futebolístico, que os pivots, jornalistas e repórteres fazem sobre os acontecimentos.

Esmagados por esse clima mórbido, procuramos, com dificuldade, um filme ou uma série que nos desanuvie o espírito, ou fechamos, então, os recetores e, por fim, abrimos o livro que havíamos adiado ler.

No canal 2 da RTP, passa, agora, uma série sobre a vida de uma advogada alemã especializada em direito criminal que, além de contar os crimes que lhe cabe defender, versa, ainda, sobre as vicissitudes da vida do seu escritório e dos seus colaboradores.

Associado ao visionamento de tal série, que é curta e não me preenche totalmente os serões, passei a ler o último livro de Javier Cercas «El Castillo de Barbazul».

Este insere-se numa triologia de livros, todos igualmente empolgantes, porque retratam a grosso, na perfeição, a vida atual do nosso mundo.

Também neste último se relata um crime comum, enquanto se descreve, com crueza, o ambiente social deletério que o enquadra.

O crime sobre que versa o livro é, apesar de tudo, centrado na vida de pessoas vulgares – e na relação de um pai e de uma filha – que, por azar da vida, se viram envolvidas, subitamente, num ambiente social e económico cujos códigos não dominam por inteiro.

De análogo – a série e o livro – têm o facto de ambos descreverem os ambientes viciosos que condicionam as iniciativas e a vida de gente normal, que, em regra, com eles nada tem a ver.

O livro e a série procuram, porém, ainda assim, centrar a nossa atenção nas contradições e opções pessoais das vítimas e dos criminosos, mostrando como elas podem, de algum modo, ser determinantes para definir a teia da sua própria história.

Demonstram, assim, também, como nada está determinado, à partida.

A maioria dos crimes denunciados às autoridades no mundo real identifica-se, perfeitamente, com o quadro das circunstâncias descritas naquela série e no livro.

Todavia, as notícias do crime que, hoje em dia, recebemos das autoridades, e depois são passadas pelos media ao público, já pouco se importam com tais pessoas simples e com os delitos, situações e problemas que geram.

Quando se trata de crime, a atenção dos media está atualmente centrada nos graves e confusos delitos envolvendo a governação política, económica e social dos países e do mundo.

São estes assuntos de difícil escrutínio que polarizam a atenção dos media e impressionam, assim, os espetadores e leitores, que, assoberbados por tais noticiários, cada vez menos entendem e acreditam nas instituições que os governam.

Ao envolver os espetadores – o povo – nestas tramas de elevado coturno, mais do que denunciar a ineficiência do sistema de justiça – que, em alguns casos, é real – os media contribuem, assim, para desviar a atenção da discussão política séria sobre a organização da sociedade em que vivemos.

E tal discussão urge, e é política.  

A guerra, o crime das elites e as pandemias, relatados e analisados, constantemente, no plano da mera abstração – apesar de as reportagens insistirem em mostrar os detalhes e pormenores mais chocantes e cruéis –, mais do que esclarecerem, banalizam tais situações doentias.

As circunstâncias que originam tais fenómenos – mesmo que os não justifiquem – raramente são, contudo, enunciadas e explicadas suficientemente.

Há quem julgue que, assim, é mais fácil ajuizar sobre as justificações: mas, não.

Por essa razão, a ficção tem hoje um papel inestimável: é ela que desvenda melhor a vida deste nosso mundo confuso e as razões do que nele agem.

As histórias concretas das personagens da série televisiva e do livro que citei, por chamarem a nossa atenção para os pormenores suscetíveis de serem experienciados por cada um de nós, acabam, assim, por nos permitir analisar, também de um ponto de vista moral, as teias que este nosso mundo tece e os crimes que só a cada um de nós são, verdadeiramente, imputáveis.

As circunstâncias que rodeiam os que cometeram os crimes, ou os evitam, são ali descritas e explicadas com arte e sentido crítico.

Do mesmo modo, as justificações concretas para os crimes revelados – ou a sua falta – são igualmente expostas e analisadas nessas obras com realismo e sem hipocrisia.

Circunstâncias e justificações, no entanto, não se confundem.

Na verdade, a responsabilidade e a justificação dos factos criminais são sempre, de algum modo, relativamente autónomas das circunstâncias em que eles ocorrem.

As circunstâncias de um facto podem, na realidade, contribuir muito para que este se verifique, mas a responsabilidade por ele não decorre apenas, ou sobretudo, delas: a intervenção dos que o quiseram é que é decisiva, é que o justificam.

Confundir circunstâncias com justificações é um erro.

As primeiras são objetivas, as outras procedem da subjetividade de quem as interpreta e, depois, decide agir.

Há ações que nada justificam, e há circunstâncias que tudo explicam: mas, repito, são independentes entre si.

Podemos, assim, não justificar de todo uma ação, e compreender, ainda assim, as circunstâncias em que ela ocorreu.

Uma boa informação não se pode, pois, limitar a comentar as (auto)justificações dos factos e tecer sobre elas juízos próprios, mas deve, também, elucidar-nos sobre as circunstâncias deles.

Saber distingui-las é fundamental para compreender o mundo, formar os nossos valores, avaliar o comportamento dos homens e orientar a nossa vida.

Tal distinção fundamental, podemos aprendê-la, porém, mais facilmente, nos romances policiais do que nos tratados jurídicos, de ciência política, ou nos discursos mediáticos: os últimos gostam até demasiado da sua confusão.

Talvez por essa razão, mesmo e sobretudo nos dias de hoje, valha mais a pena ler romances policiais do que ouvir noticiários ribombantes com que permanentemente os media nos brindam.

 

Ler romances policiais e aprender a distinguir justificações de circunstâncias para melhor compreender o que se passa no mundo


A responsabilidade e a justificação dos factos criminais são sempre, de algum modo, relativamente autónomas das circunstâncias em que eles ocorrem.


Nestes dias sombrios de guerra, começa a ser penoso abrir a televisão.

Aos bombardeamentos televisionados quase em direto, somam-se os constantes bombardeamentos doutrinários dos opinion makers e dos relatos, em estilo futebolístico, que os pivots, jornalistas e repórteres fazem sobre os acontecimentos.

Esmagados por esse clima mórbido, procuramos, com dificuldade, um filme ou uma série que nos desanuvie o espírito, ou fechamos, então, os recetores e, por fim, abrimos o livro que havíamos adiado ler.

No canal 2 da RTP, passa, agora, uma série sobre a vida de uma advogada alemã especializada em direito criminal que, além de contar os crimes que lhe cabe defender, versa, ainda, sobre as vicissitudes da vida do seu escritório e dos seus colaboradores.

Associado ao visionamento de tal série, que é curta e não me preenche totalmente os serões, passei a ler o último livro de Javier Cercas «El Castillo de Barbazul».

Este insere-se numa triologia de livros, todos igualmente empolgantes, porque retratam a grosso, na perfeição, a vida atual do nosso mundo.

Também neste último se relata um crime comum, enquanto se descreve, com crueza, o ambiente social deletério que o enquadra.

O crime sobre que versa o livro é, apesar de tudo, centrado na vida de pessoas vulgares – e na relação de um pai e de uma filha – que, por azar da vida, se viram envolvidas, subitamente, num ambiente social e económico cujos códigos não dominam por inteiro.

De análogo – a série e o livro – têm o facto de ambos descreverem os ambientes viciosos que condicionam as iniciativas e a vida de gente normal, que, em regra, com eles nada tem a ver.

O livro e a série procuram, porém, ainda assim, centrar a nossa atenção nas contradições e opções pessoais das vítimas e dos criminosos, mostrando como elas podem, de algum modo, ser determinantes para definir a teia da sua própria história.

Demonstram, assim, também, como nada está determinado, à partida.

A maioria dos crimes denunciados às autoridades no mundo real identifica-se, perfeitamente, com o quadro das circunstâncias descritas naquela série e no livro.

Todavia, as notícias do crime que, hoje em dia, recebemos das autoridades, e depois são passadas pelos media ao público, já pouco se importam com tais pessoas simples e com os delitos, situações e problemas que geram.

Quando se trata de crime, a atenção dos media está atualmente centrada nos graves e confusos delitos envolvendo a governação política, económica e social dos países e do mundo.

São estes assuntos de difícil escrutínio que polarizam a atenção dos media e impressionam, assim, os espetadores e leitores, que, assoberbados por tais noticiários, cada vez menos entendem e acreditam nas instituições que os governam.

Ao envolver os espetadores – o povo – nestas tramas de elevado coturno, mais do que denunciar a ineficiência do sistema de justiça – que, em alguns casos, é real – os media contribuem, assim, para desviar a atenção da discussão política séria sobre a organização da sociedade em que vivemos.

E tal discussão urge, e é política.  

A guerra, o crime das elites e as pandemias, relatados e analisados, constantemente, no plano da mera abstração – apesar de as reportagens insistirem em mostrar os detalhes e pormenores mais chocantes e cruéis –, mais do que esclarecerem, banalizam tais situações doentias.

As circunstâncias que originam tais fenómenos – mesmo que os não justifiquem – raramente são, contudo, enunciadas e explicadas suficientemente.

Há quem julgue que, assim, é mais fácil ajuizar sobre as justificações: mas, não.

Por essa razão, a ficção tem hoje um papel inestimável: é ela que desvenda melhor a vida deste nosso mundo confuso e as razões do que nele agem.

As histórias concretas das personagens da série televisiva e do livro que citei, por chamarem a nossa atenção para os pormenores suscetíveis de serem experienciados por cada um de nós, acabam, assim, por nos permitir analisar, também de um ponto de vista moral, as teias que este nosso mundo tece e os crimes que só a cada um de nós são, verdadeiramente, imputáveis.

As circunstâncias que rodeiam os que cometeram os crimes, ou os evitam, são ali descritas e explicadas com arte e sentido crítico.

Do mesmo modo, as justificações concretas para os crimes revelados – ou a sua falta – são igualmente expostas e analisadas nessas obras com realismo e sem hipocrisia.

Circunstâncias e justificações, no entanto, não se confundem.

Na verdade, a responsabilidade e a justificação dos factos criminais são sempre, de algum modo, relativamente autónomas das circunstâncias em que eles ocorrem.

As circunstâncias de um facto podem, na realidade, contribuir muito para que este se verifique, mas a responsabilidade por ele não decorre apenas, ou sobretudo, delas: a intervenção dos que o quiseram é que é decisiva, é que o justificam.

Confundir circunstâncias com justificações é um erro.

As primeiras são objetivas, as outras procedem da subjetividade de quem as interpreta e, depois, decide agir.

Há ações que nada justificam, e há circunstâncias que tudo explicam: mas, repito, são independentes entre si.

Podemos, assim, não justificar de todo uma ação, e compreender, ainda assim, as circunstâncias em que ela ocorreu.

Uma boa informação não se pode, pois, limitar a comentar as (auto)justificações dos factos e tecer sobre elas juízos próprios, mas deve, também, elucidar-nos sobre as circunstâncias deles.

Saber distingui-las é fundamental para compreender o mundo, formar os nossos valores, avaliar o comportamento dos homens e orientar a nossa vida.

Tal distinção fundamental, podemos aprendê-la, porém, mais facilmente, nos romances policiais do que nos tratados jurídicos, de ciência política, ou nos discursos mediáticos: os últimos gostam até demasiado da sua confusão.

Talvez por essa razão, mesmo e sobretudo nos dias de hoje, valha mais a pena ler romances policiais do que ouvir noticiários ribombantes com que permanentemente os media nos brindam.