É flamenco? É música evangélica? É português? É música cigana e é isto que podemos ver e ouvir no filme A Música Invisível, de Tiago Pereira, criador do projeto a Música Portuguesa a Gostar de Si Própria, onde, mais do que responder a todas estas questões, o realizador pretende fazer incidir luz sobre uma comunidade marginalizada que vive em Portugal há mais de 500 anos e que tem tanta dificuldade em partilhar e mostrar a sua música.
“Há câmaras municipais que me sinalizam diversas partes dos municípios para ir gravar, mas quando falo sobre, por exemplo, os acampamentos ciganos, onde é possível ouvir música, dizem-me que ‘isso não conta”, confessa ao i o realizador. “Porque é que não haveria de contar?”, questiona-se.
Durante a entrevista com i, Tiago Pereira explora o início do projeto, as dificuldades de gravar com uma comunidade fechada e segregada, mas também os valores desta música e dos seus intérpretes, partilhando o seu desejo de que a música passe a valer por si própria, sem ser preciso olhar para rótulos, estereótipos ou etnias.
De onde surgiu a ideia para criar este filme, A Música Invisível?
Há muito tempo que a Música Portuguesa a Gostar de Si Própria andava a gravar músicos ciganos. A primeira sessão aconteceu em 2014, quando gravámos o José Lito Maia, o autor original da canção O Pai da Criança e, inclusive, existe uma homenagem a ele no filme. Na altura, o músico estava em conflitos devido à autoria da canção, uma vez que o grupo Chave D’Ouro é que acabou por tornar esta música popular. Depois dessa experiência fiquei com vontade de gravar mais música cigana, mas era muito difícil, nem sempre era possível. Mais tarde, em 2015, em Moura, cidade no distrito de Beja, consegui gravar alguns artistas, mas, mesmo assim, continuava a ser pouco. Só no ano seguinte, em Elvas, é que consegui gravar com mais intenção. Sempre tive muito o desejo de poder partilhar este estilo de música e de criar um projeto chamado A Música Cigana a Gostar Dela Própria.
Esse projeto acabou por nascer em 2019, como é que surgiu o convite para o criar?
Com o apoio do Alto Comissariado das Migrações (ACM) e com a secretaria de Estado para as Migrações foi possível gravar este projeto com mais empenho. Captámos cerca de duzentos vídeos no espaço de dois anos, mas a pandemia acabou por colocar um travão no projeto, uma vez que as comunidades se fecharam muito. Mais tarde, numa conversa com o Festival Política, gerou-se a oportunidade de poder fazer este documentário. Através de todas as filmagens que tínhamos feito ao longo deste tempo e de um processo de edição conseguimos quase montar o filme na sua totalidade.
Que filmagens é que precisaram de fazer para complementar o que já tinham?
Fizemos algumas posteriores. Por acaso, recebi um email do José Pedro Lima, um guitarrista de flamenco que surge no documentário e ajuda a fazer a parte narrativa, porque ele pretendia fazer um projeto musical com um músico cigano que tinha visto no A Música Cigana a Gostar Dela Própria. Respondi-lhe logo que queria era gravá-lo a ele (risos). Precisava de o gravar a explicar porque é que ele queria gravar um projeto de flamenco. Foi através dessa junção de filmagens que nasceu A Música Invisível.
Quando é que começou a juntar todas essas gravações que acabaram por gerar este trabalho final?
Foi há pouquíssimo tempo, montei todas as filmagens no espaço de um mês. O desafio para criar este filme, para ser exibido no Festival Política, surgiu em março, portanto, tive pouco tempo para o preparar, uma vez que, em Lisboa, o filme foi exibido no dia 22 de abril. Já tinha gravado entrevistas com artistas ciganos e sabia que havia algumas que estavam incríveis e que tinham de ser usadas. Quando comecei a montar o documentário não comecei nem no princípio, nem pelo fim, mas sim pelo meio, onde estavam as entrevistas de que me lembrava e que considerei serem cruciais, nomeadamente, aquelas com o Beto Beethoven e o músico Armando Cabreiras, conhecido como Raspa, que acabou também por ser um dos narradores do documentário. Curiosamente, no final do filme, os dois partilham a mesma opinião sobre o futuro do flamenco português e como este continua a evoluir, enquanto o flamenco espanhol já alcançou o seu pico.
Foi uma bela coincidência.
Não diria que foi apenas fruto do acaso. Era a única coisa que eles podiam dizer. Qualquer pessoa que estude o flamenco, que perceba a sua lógica e que seja português, iria a esta conclusão. A evolução e a continuidade ou não da música flamenca em Portugal passa por procurar elementos do nosso país e não fazendo a cópia daquilo que melhor se faz em Espanha.
Esse discurso sobre a renovação do flamenco enquanto se aproveita novos elementos da música portuguesa fez-me lembrar alguns sucessos recentes da música espanhola, como a Rosalía ou o C. Tangana, que têm oferecido uma roupagem nova ao flamenco com linguagens mais contemporâneas.
É a continuação e evolução das fórmulas musicais já existentes. Quando comecei a trabalhar n’A Música Cigana a Gostar Dela Própria a minha questão era exatamente essa. Queria provar, em vídeo, se em Portugal a música que existia na comunidade cigana era, exatamente, o flamenco ou se já tinha fusões de tudo o resto como existia nas práticas tradicionais do resto do país. Acredito que a conclusão a que se chegou foi exatamente essa. Conseguimos ouvir hip-hop, kuduro e outros elementos. A única diferença é que a comunidade cigana está cada vez mais ligada a comunidades religiosas e vamos parar a este estilo que copia música religiosa espanhola, adotando inclusive esta língua. Existe muita música evangélica mais… pop, que acaba por influenciar estas comunidades.
Um dos estilos que mais foi ressalvado durante o documentário foi o hip-hop. Uma vez que também é uma música associada a uma comunidade ostracizada, faz sentido este casamento com a música cigana?
A questão mais cómica é ter um músico de hip-hop que se inspira nos versículos da Bíblia para fazer hip-hop, como é o caso do rapper Lukas que surge no documentário. Misturar estes estilos musicais faz sentido. Vivemos num tempo em que a tradição é a remistura. Atualmente, com a velocidade com que a informação é transmitida, é impossível pensar que as coisas não se contaminam e não se misturam umas com as outras. Isto é assim desde o princípio da rádio e agora, com a internet, é ainda mais rápido e estas misturas são cada vez mais asseguradas. Aquela cena em que se vê umas jovens a dançar, apesar de não ser a música que ouvimos no filme, elas estavam a dançar a Rosalía. É aquilo que elas gostam e o que faz sentido nas suas cabeças estarem a dançar. A música não é algo estanque, está sempre a receber contaminações e isso é que é bom.
Muitos dos músicos que entrevista neste projeto são amadores. Como foi o processo de descobrir estes talentos?
É um bocado complicado, a comunidade cigana, por razões óbvias, não é muito aberta e fácil. Como é que um povo e a sua música não são considerados portugueses mesmo estando em Portugal há mais de 500 anos? Todos os músicos que gravei, os seus avôs, bisavôs, ou trisavôs já tinham nascido em Portugal. São mais que portugueses, mas a sua música nunca foi gravada. Sempre foram feitas gravações de músicas etnográficas, como a música tradicional, mas os ciganos ficaram sempre de fora. Ninguém sabe muito bem explicar este fenómeno, eu também não, mas na verdade não quero oferecer justificações, quero é levantar esta questão, resolver esse problema e perceber se existe interesse em que isso aconteça, até porque este tipo de música continua a existir nas suas comunidades, enquanto a música popular ou tradicional já não está viva e não faz sentido. A música na comunidade cigana continua viva, sem hora marcada, é aprendida de forma orgânica uns com os outros, sem ir às escolas, sem aprender solfejo, sem aprender a tocar flauta de bisel.
Quão complicado foi chegar a estas músicos?
Às vezes era difícil. Em algumas ocasiões chegávamos aos músicos porque eram escolhas do ACM, outras vezes descobríamos os músicos na internet através do YouTube, que tem muita força nesta comunidade, uma vez que funciona como uma plataforma para transmitirem a música uns aos outros. Às vezes era possível chegar aos músicos, outras vezes não. Também chegávamos aos músicos por recomendações de terceiros que nos colocavam em contacto. Mas foi um processo complicado. Em Portugal, mais de metade da comunidade cigana está convertida às igrejas evangélicas e estas têm uma divisão muito forte entre tocar para o mundo e só para Deus, e muitos só tocam para Deus, não permitindo que o seu trabalho seja gravado. Apesar da maior parte do que gravámos ser música com ligações religiosas.
Houve algum episódio que o tivesse marcado ligado a esta barreira em ser ou não gravado?
A partir do momento em que entramos na comunidade já estávamos lá inseridos, não houve nenhuma situação desconfortável. Mas é um processo. O cigano vive o momento, nós temos de nos adaptar a uma realidade que em nada tem a ver com a nossa. Estamos formatos pela sociedade e vivemos de uma determinada maneira, eles têm a sua própria maneira de viver, com o seu próprio tempo e horários. Quando estou a fazer gravações com a Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, sou capaz de gravar todos os dias dez ou quinze pessoas diferentes. Neste caso é diferente, isso não seria possível, toda a forma de gerir o tempo é diferente. É preciso adaptar e perceber. É muito interessante compreender que é nestas situações que a música funciona como uma cola social que consegue resolver todos os problemas sociais, porque a música é universal e consegue atravessar todas as fronteiras culturais e temporais. Quando começávamos a gravar as coisas aconteciam com grande naturalidade.
É interessante falar sobre esta vontade de quebrar fronteiras, sinto que o estilo da filmagem captava muito bem essa vontade, ao gravar os músicos sem qualquer barreira e num estilo bastante direto e pessoal.
Este foi o estilo que fomos desenvolvendo ao longo do tempo nestes projetos, mas neste caso, aconteciam de forma muito mais crua. Em alguns casos, os músicos não queriam gravar nos bairros, porque não queriam mostrar esta realidade. Fui percebendo que aqueles que se consideravam ‘músicos’ pretendiam seguir uma linha mais profissional, com uma produção muito mais desenvolvida e custava-lhes ver as gravações mais cruas porque pretendiam mostrar um lado mais sério. Muitos músicos não gostaram das gravações quando lhes mostrei pela primeira vez, só mudaram de ideias quando viram o documentário, onde já existia uma correção de cores ou uma mistura de som mais completa.
Sente que eles não gostavam das gravações mais cruas porque os podia associar a uma certa falta de profissionalismo?
Esta mentalidade está associada ao estigma e à vontade de o quebrar. Se a música cigana não é considerada portuguesa como é que podiam furar cá para fora? Mesmo em casos de artistas de maior sucesso como o Nininho Vaz Maia, que fazem muitos concertos pelo país fora, é complicado fazerem aparições, por exemplo, em festivais como o Super Bock Super Rock ou no NOS Alive. Ainda existe esta separação estúpida. Pode ser clichê dizer isto, mas acredito que as coisas só podem ser boas quando a música valer pela própria música, quando deixar de interessar qual é a etnia ou seja o que for. O que importa é a música que está a ser tocada e quando chegarmos a essa fase é porque a música venceu por si própria, sem ser preciso estarmos a discutir se é flamenco, se é ou não portuguesa. Uma coisa importante de notar no documentário é que há ciganos que são cantautores, que fazem as suas próprias letras e canções, mas depois não chegam a lado nenhum. É preciso fazer um esforço para que a música cigana deixe de ser invisível e passe a ser ouvida.
Então diria que o mais importante neste documentário não é provar se a música cigana é ou não música portuguesa, mas sim a sua divulgação e valorização?
A nossa função é incidir a luz no trabalho de toda a gente que não é conhecida, mas neste caso, o mais importante é dizer que ela existe e ter em consideração que sofre as mesmas mutações que a música popular e tradicional portuguesa. Existem músicos, pessoas com vontade e que aprenderam sozinhas.
Uma parte bonita do documentário é que parecia mostrar que esta comunidade nascia com um talento inato para fazer música.
Às vezes o documentário parece mostrar que os ciganos aprendem de forma orgânica e quase nascem a saber fazer música, mas não basta isso. Se quiseres tocar bem flamenco é preciso perder muitas, muitas horas e esforçar-se muito. E isso é igual para a comunidade cigana como para todas as outras. É isto que é a música. Podes ter a vontade e o talento, mas também é preciso muita dedicação e eu quis sinalizar todas estas pessoas esforçadas e trabalhadoras que estão a gravar música que só existe no seu nicho e que nem sempre é considerada. Temos de passar a considerar esta realidade, temos de passar a considerar como música portuguesa, mesmo que nunca tenha sido gravada, mas é nossa.
Sente que existe os apoios necessários para estes músicos singrarem?
Em muitos casos, há câmaras municipais que me sinalizam diversas partes dos municípios para ir gravar, mas quando falo sobre, por exemplo, os acampamentos ciganos, onde é possível ouvir música, dizem-me que “isso não conta”. Porque é que não haveria de contar? É quase como se consideram como uma realidade à parte, mas não é “à parte”. É música na mesma e se é feita em Portugal é música portuguesa. Há que compreender isto. Além de existir este estigma, ainda há esta questão de viverem à margem e de não os quererem considerar como parte da sociedade.
Espera que este documentário possa ajudar a quebrar este estigma que existe na comunidade cigana?
Espero que possa abrir umas certas luzes. Esse estigma não é quebrado com um documentário. O que vai acontecer e o que está a acontecer, pelo menos comigo, é permitir que a comunidade cigana se abra cada vez mais, não só para os meus projetos, mas também para outros. A partir do momento em que isso possa acontecer, pode haver mais gente a interessar-se e até mais cruzamentos. Já recebi mensagens de ciganos que se questionavam quem eram os músicos talentosos que surgiam nos vídeos e pediam os seus contactos para poderem fazer música juntos. É isso que pretendo. Ver músicos não-ciganos a tocarem com músicos ciganos e que possam fazer projetos juntos para que as ideias possam florescer. Quando isso começar a acontecer a música ganha uma vida própria e começa a funcionar independentemente. É isso que tem de acontecer e espero que o documentário possa permitir essa abertura. Mas até acabar o estigma é uma questão muito mais complexa.
Infelizmente, a música ainda não tem o poder de acabar com este tipo de preconceitos.
O preconceito faz parte de um trabalho social muito maior e mais complexo, mas se começar com a música, e esta puder ajudar a unir e a juntar mais pessoas, isso já é uma grande ajuda e pode permitir que muitas pessoas se abram mais a esta comunidade, mas é um processo.