Um país, dois sistemas


Os socialistas entendem muito melhor um cidadão russo que faz uma associação ligada à Câmara de Setúbal, onde a mulher trabalha – que, num par de anos, sugam a essa câmara quase 100.000 euros, não se sabe bem para quê – do que um cidadão que crie uma empresa que não dependa do Estado. Isso para eles…


O Presidente Chinês Deng Xiaoping, para quem se lembra, lançou as bases da política de absorção de Hong Kong e Macau e – esperava – um dia, a Formosa, com a célebre proposta de “um país (a China), dois sistemas (o comunismo e o capitalismo)”. A coisa terá funcionado no sentido em que nasceu na China um capitalismo patrocinado e tolerado pelo Estado que deu origem a empresas tão enormes e tão dependentes da boa vontade do partido comunista reinante como a Alibaba e a Tencent, mantendo-se Hong Kong e Macau como “infernos capitalistas” que têm vindo progressivamente a perder liberdades quer políticas, quer de empreender. 

No nosso pequeno país, que nos termos do preâmbulo da Constituição se empenha em “abrir caminho para uma sociedade socialista” (parece brincadeira, mas é verdade!), também nós, apesar deste imperativo constitucional, criamos um regime de “um país, dois sistemas”. 

Os dois sistemas são, por um lado, a sociedade e a economia que gravitam à volta do Estado, sistema servido por uma boa parte dos portugueses, incluindo aqueles que tal como os “capitalistas” chineses, sabem que sem o Estado não são nada e, por outro lado, a sociedade e a economia que gravitam à volta da iniciativa privada e do trabalho árduo e da procura do sucesso por meios legais. 

Dir-me-ão os leitores que tenham a paciência de me ler, que isso não existe, é uma invenção minha. Mas não é.
São milhares os exemplos de coisas que funcionam em paralelo na economia do Estado e na economia privada e que sustentam dois sistemas e, até, duas ecologias sociais distintas.

Repare como os políticos do PS, quando saem do Governo, se acolhem inevitavelmente a um qualquer recuo público ou empresa dominada pelo Estado e que as raras excepções, a maior parte das vezes, escondem propósitos ainda mais perversos; e repare como os políticos do centro e da direita vão quase invariavelmente para o sector privado, empresas de consultoria ou advocacia, sociedades comerciais diversas, universidades privadas, ou se dedicam aos seus próprios negócios. 

Mas “um país, dois sistemas” é uma coisa muito mais profunda: na saúde, onde há hoje uma linha que divide a saúde com um mínimo de qualidade, dispensada pelos hospitais privados, e a saúde com listas de espera de anos dispensada pelos hospitais públicos, tudo dividido, como uma risca ao meio no cabelo, entre quem tem e quem não tem um cartão de um seguro médico decente. Quem tem, são os cidadãos de classe média e alta, quem não tem, são a esmagadora maioria dos trabalhadores por conta de outrem e os pobres. Aquilo a que antigamente se chamava o “proletariado”. 

O nosso maravilhoso sistema nacional de saúde custa mais caro por utente e por acto médico que os sistemas privados, a qualidade dos serviços que presta é consideravelmente pior, a forma como os presta é aviltante para quem os recebe, tem os funcionários mais mal pagos, menos satisfeitos com o trabalho que prestam e as condições em que trabalham, as listas de espera mais absurdamente longas, os sistemas de gestão mais aldrabados, os atrasos de pagamentos aos prestadores privados mais vergonhosos. É, em suma, um buraco negro e um sorvedouro de dinheiro com pouco proveito para a comunidade. 

Ao lado, para quem o pode pagar, funciona – bem – um sistema de saúde privada que trata os doentes como clientes a necessitar de cuidados, os recebe em boas condições de higiene e segurança, lhes dá quartos decentes, lhes marca consultas, operações e tratamentos a tempo e horas. 

Os dois sistemas repetem-se na educação: se a nível universitário as diferenças se esbatem, ao nível da primária e secundário, onde se formam os carácteres, os hábitos de estudo e os alicerces do conhecimento, as diferenças são hoje brutais e cada vez mais. Para quem, como eu, frequentou o sistema público de ensino e com grande proveito, é uma impressão muito estranha verificar que hoje esse sistema deixou de funcionar e de formar gerações. O resultado é que a vida pública e a das empresas é cada vez mais dominada por gente que fez a sua aprendizagem inicial em escolas privadas, criando um “old boys network” que facilita, e de que maneira, a entrada na vida profissional ao melhor nível (e não, o melhor nível, não é a trabalhar para o Estado…). 

O mundo do trabalho é outro exemplo do regime “um país, dois sistemas”: são os funcionários públicos e das empresas públicas que fazem sempre as greves, em sectores estratégicos para a economia, quase nunca os do sector privado, ou até dos concessionários de serviços públicos. 

Podia dar muitos mais e igualmente óbvios exemplos, mas quem me leia sabe por experiência vivida do que estou a falar. Vivemos no mesmo país, mas em mundos distintos, em que, de facto, o elevador social deixou de funcionar, os políticos de esquerda que, da vida, aprenderam como gerir em seu proveito os sistemas públicos, encrustam-se no Estado, os políticos de direita vão vivendo entre a sua vida normal e a gestão do Estado quando o eleitorado os escolhe, naquilo a que a esquerda chama – porque o sistema a enoja – as “portas giratórias”. 

Um péssimo efeito colateral é a falta de traquejo, cada vez mais manifesta, dos políticos de direita em lidar com uma máquina do Estado infestada de apparatchiks socialistas, em que escasseiam cada vez mais altos funcionários que não estejam enfeudados ao partido socialista. 

O reverso disto, é a incapacidade dos socialistas em entender o mundo da iniciativa privada e da gente que nela trabalha e produz riqueza, que – lá está – vivem num universo que não é o deles. 

Os socialistas entendem muito melhor um cidadão russo que faz uma associação ligada à Câmara de Setúbal, onde a mulher trabalha – que, num par de anos, sugam a essa Câmara quase 100.000 euros, não se sabe bem para quê – do que um cidadão que crie uma empresa que não dependa do Estado. Isso para eles é apostasia… 

É por isso que uma ex-ministra da Educação socialista não hesita em dar centenas de milhares de euros a um correligionário, para ele fazer um compêndio de legislação sobre educação, que aliás nunca fez, e que bastava ir ao Diário da República para fazer. Isso, os socialistas entendem. 

O resto dos portugueses, não. O problema é que o resto dos portugueses não se entendem para encontrar quem lhes ganhe eleições e ponha o país nos eixos. E os socialistas vão cumprindo o imperativo constitucional de “abrir caminho para uma sociedade socialista”. Mas sempre com todo o respeito pelo Estado de direito … democrático. Claro.

Um país, dois sistemas


Os socialistas entendem muito melhor um cidadão russo que faz uma associação ligada à Câmara de Setúbal, onde a mulher trabalha – que, num par de anos, sugam a essa câmara quase 100.000 euros, não se sabe bem para quê – do que um cidadão que crie uma empresa que não dependa do Estado. Isso para eles…


O Presidente Chinês Deng Xiaoping, para quem se lembra, lançou as bases da política de absorção de Hong Kong e Macau e – esperava – um dia, a Formosa, com a célebre proposta de “um país (a China), dois sistemas (o comunismo e o capitalismo)”. A coisa terá funcionado no sentido em que nasceu na China um capitalismo patrocinado e tolerado pelo Estado que deu origem a empresas tão enormes e tão dependentes da boa vontade do partido comunista reinante como a Alibaba e a Tencent, mantendo-se Hong Kong e Macau como “infernos capitalistas” que têm vindo progressivamente a perder liberdades quer políticas, quer de empreender. 

No nosso pequeno país, que nos termos do preâmbulo da Constituição se empenha em “abrir caminho para uma sociedade socialista” (parece brincadeira, mas é verdade!), também nós, apesar deste imperativo constitucional, criamos um regime de “um país, dois sistemas”. 

Os dois sistemas são, por um lado, a sociedade e a economia que gravitam à volta do Estado, sistema servido por uma boa parte dos portugueses, incluindo aqueles que tal como os “capitalistas” chineses, sabem que sem o Estado não são nada e, por outro lado, a sociedade e a economia que gravitam à volta da iniciativa privada e do trabalho árduo e da procura do sucesso por meios legais. 

Dir-me-ão os leitores que tenham a paciência de me ler, que isso não existe, é uma invenção minha. Mas não é.
São milhares os exemplos de coisas que funcionam em paralelo na economia do Estado e na economia privada e que sustentam dois sistemas e, até, duas ecologias sociais distintas.

Repare como os políticos do PS, quando saem do Governo, se acolhem inevitavelmente a um qualquer recuo público ou empresa dominada pelo Estado e que as raras excepções, a maior parte das vezes, escondem propósitos ainda mais perversos; e repare como os políticos do centro e da direita vão quase invariavelmente para o sector privado, empresas de consultoria ou advocacia, sociedades comerciais diversas, universidades privadas, ou se dedicam aos seus próprios negócios. 

Mas “um país, dois sistemas” é uma coisa muito mais profunda: na saúde, onde há hoje uma linha que divide a saúde com um mínimo de qualidade, dispensada pelos hospitais privados, e a saúde com listas de espera de anos dispensada pelos hospitais públicos, tudo dividido, como uma risca ao meio no cabelo, entre quem tem e quem não tem um cartão de um seguro médico decente. Quem tem, são os cidadãos de classe média e alta, quem não tem, são a esmagadora maioria dos trabalhadores por conta de outrem e os pobres. Aquilo a que antigamente se chamava o “proletariado”. 

O nosso maravilhoso sistema nacional de saúde custa mais caro por utente e por acto médico que os sistemas privados, a qualidade dos serviços que presta é consideravelmente pior, a forma como os presta é aviltante para quem os recebe, tem os funcionários mais mal pagos, menos satisfeitos com o trabalho que prestam e as condições em que trabalham, as listas de espera mais absurdamente longas, os sistemas de gestão mais aldrabados, os atrasos de pagamentos aos prestadores privados mais vergonhosos. É, em suma, um buraco negro e um sorvedouro de dinheiro com pouco proveito para a comunidade. 

Ao lado, para quem o pode pagar, funciona – bem – um sistema de saúde privada que trata os doentes como clientes a necessitar de cuidados, os recebe em boas condições de higiene e segurança, lhes dá quartos decentes, lhes marca consultas, operações e tratamentos a tempo e horas. 

Os dois sistemas repetem-se na educação: se a nível universitário as diferenças se esbatem, ao nível da primária e secundário, onde se formam os carácteres, os hábitos de estudo e os alicerces do conhecimento, as diferenças são hoje brutais e cada vez mais. Para quem, como eu, frequentou o sistema público de ensino e com grande proveito, é uma impressão muito estranha verificar que hoje esse sistema deixou de funcionar e de formar gerações. O resultado é que a vida pública e a das empresas é cada vez mais dominada por gente que fez a sua aprendizagem inicial em escolas privadas, criando um “old boys network” que facilita, e de que maneira, a entrada na vida profissional ao melhor nível (e não, o melhor nível, não é a trabalhar para o Estado…). 

O mundo do trabalho é outro exemplo do regime “um país, dois sistemas”: são os funcionários públicos e das empresas públicas que fazem sempre as greves, em sectores estratégicos para a economia, quase nunca os do sector privado, ou até dos concessionários de serviços públicos. 

Podia dar muitos mais e igualmente óbvios exemplos, mas quem me leia sabe por experiência vivida do que estou a falar. Vivemos no mesmo país, mas em mundos distintos, em que, de facto, o elevador social deixou de funcionar, os políticos de esquerda que, da vida, aprenderam como gerir em seu proveito os sistemas públicos, encrustam-se no Estado, os políticos de direita vão vivendo entre a sua vida normal e a gestão do Estado quando o eleitorado os escolhe, naquilo a que a esquerda chama – porque o sistema a enoja – as “portas giratórias”. 

Um péssimo efeito colateral é a falta de traquejo, cada vez mais manifesta, dos políticos de direita em lidar com uma máquina do Estado infestada de apparatchiks socialistas, em que escasseiam cada vez mais altos funcionários que não estejam enfeudados ao partido socialista. 

O reverso disto, é a incapacidade dos socialistas em entender o mundo da iniciativa privada e da gente que nela trabalha e produz riqueza, que – lá está – vivem num universo que não é o deles. 

Os socialistas entendem muito melhor um cidadão russo que faz uma associação ligada à Câmara de Setúbal, onde a mulher trabalha – que, num par de anos, sugam a essa Câmara quase 100.000 euros, não se sabe bem para quê – do que um cidadão que crie uma empresa que não dependa do Estado. Isso para eles é apostasia… 

É por isso que uma ex-ministra da Educação socialista não hesita em dar centenas de milhares de euros a um correligionário, para ele fazer um compêndio de legislação sobre educação, que aliás nunca fez, e que bastava ir ao Diário da República para fazer. Isso, os socialistas entendem. 

O resto dos portugueses, não. O problema é que o resto dos portugueses não se entendem para encontrar quem lhes ganhe eleições e ponha o país nos eixos. E os socialistas vão cumprindo o imperativo constitucional de “abrir caminho para uma sociedade socialista”. Mas sempre com todo o respeito pelo Estado de direito … democrático. Claro.