“Sou diretor clínico e professor universitário. Oficialmente médico desde 1997 e antes não se falava disto. Não existia nos conteúdos programáticos das cadeiras. É um tema recentemente falado. Tudo isto está alicerçado no Not One More Vet (NOMV). Este grupo começou a debruçar-se sobre este problema. Esta problemática é emergente. Há congressos mundiais que têm este tema como dominante”, começa por explicar Pedro Almeida, mestre em Ciências Veterinárias pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em 2012, sendo também Pós-Graduado em Medicina de Animais de Companhia.
“O que eu notei é que a veterinária depende muito do sítio onde se trabalha. Comecei logo num grande hospital e exige-se muito. Movo-me na área dos animais de companhia: eles não falam e os donos, agora tutores, têm graus de expectativa e relação diferentes. Há alguns para os quais os animais são filhos e há pessoas que, não me cabe julgar, não lhes dão a mesma relevância”, continua o profissional, sublinhando a importância da conferência “O bem-estar profissional em Medicina Veterinária”, que tem lugar este sábado na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, em Lisboa, para tratar temas como fadiga por compaixão, exaustão e burnout entre veterinários, este sábado.
“Ao longo do tempo, o acesso à informação ajuda e, por outro lado, complica. Há quem venha com diagnósticos por ter pesquisado na internet, tal como na medicina humana. Todos nós nos questionamos acerca de tudo, mas, no meu caso em particular, não”, diz, lamentando, no entanto, que a saúde psicológica dos médicos veterinários só tenha sido estudada, pela primeira vez, há quatro anos.
Em causa está o estudo: “Survey of the veterinary profession in Europe”, da Federação dos Médicos Veterinários da Europa. Responderam ao inquérito 1267 dos 6058 profissionais contabilizados em Portugal. “Até aí, o assunto não era aprofundado. Tem algumas particularidades: por exemplo, são contabilizados 6 mil veterinários – 70% mulheres – em Portugal. E muitos abaixo de 40 anos”, afirma, referindo-se ao facto de a Rússia, Portugal, a Estónia e a Polónia serem os países da União Europeia com o maior número de médicos veterinários com idade inferior aos 40 anos. A seu lado, a Dinamarca, a Irlanda e os Países Baixos têm mais de 30% destes médicos com idade superior a 50 anos.
“E esta problemática do burnout é mais evidente. Nesse estudo, os portugueses mostram ser os mais insatisfeitos e ponderam mudar de setor e até mesmo de profissão. Curiosamente, a Holanda é onde se trabalha menos horas, e estão mais satisfeitos. Os níveis de stress também foram analisados de 7 a 10 e a média deu 7 e pouco. Esses veterinários reportaram que tiveram de tirar pelo menos duas semanas de baixa. Nós não temos hospitais públicos de veterinária, só há privados, e há limitações”, assinala, explicando a realidade com que lidam no dia a dia: “há quem saiba que os animais estão profundamente doentes e não tenha dinheiro para salvar os animais”.
“Há muitos animais vadios, centros de recolha, e é complicado fazer medicina nestes termos. O Sul da Europa tem muitos mais animais vadios do que os restantes países. Também não podemos esquecer a questão educacional: as pessoas, quando pensam em ter um filho, focam-se nas condições económicas. No caso dos animais de companhia, existe muita irresponsabilidade quando são adotados. Não são peluches, precisam de cuidados”, explica Pedro Almeida, alertando para o modo como os portugueses encaram aqueles que os acompanham diariamente.
“E depois há algo injusto: põem quase sempre a batata quente do nosso lado. ‘Então, mas vocês não gostam de animais?’. Há custos e responsabilidades. E, no fundo, o desgaste é maior para os veterinários. Sinceramente, acho que não mudou grande coisa. Tenho visto muitos colegas a ter esgotamentos, burnouts. Vejo cada vez mais e a covid-19 veio agravar mais isto”, salienta, reconhecendo, porém, que desde o surgimento do novo coronavírus, a importância dada à saúde mental é distinta.
“Se bem que, agora, todo o mundo da veterinária está mais sensível para estes temas. Quando os veterinários põem baixa, dizem porque puseram. Antes, estavam mas era tudo um bocadinho escondido. Tenho uma responsabilidade acrescida porque sou líder de uma equipa e obrigo-me a não ceder. Porque facilmente a minha equipa – aproximadamente 50 pessoas – cede também. Tenho de lhes transmitir força, mas tem sido duro também para mim. É difícil porque situações complicadas temos todos os dias”, esclarece, adiantando que a dificuldade na comunicação de mortes e o sentimento de impotência são dois dos problemas mais frequentes nesta classe profissional.
“As doenças de animais de companhia”, cujo tratamento é a principal fonte de rendimento de mais de 80% dos veterinários russos, portugueses, espanhóis e italianos, “são cada vez mais como as dos humanos, por exemplo, as oncológicas. A medicina tem vindo a evoluir, mas as pessoas e os animais vivem mais tempo e não necessariamente melhor. Aprendemos a prolongar a vida, mas acaba por haver um desgaste. No fundo, temos de prolongar uma faixa etária mais saudável”, declara, sendo importante mencionar que, em 2015, em Portugal, na Bulgária, na Bélgica, na Sérvia e na Islândia, 90% ou mais veterinários trabalhavam a full-time. Volvidos três anos, este mesmo limiar de tipo de contrato e trabalho era observado na Sérvia, na Macedónia do Norte, na Eslovénia e na Turquia.
“As pessoas envelhecem com a mesma cronologia e a fase geriátrica incapacitante está mais prolongada porque se consegue que vivam. Os cuidados paliativos e continuados são desgastantes. Contudo, não posso só falar dos pontos negativos. A nível de remuneração há uma melhoria clara. Não exponencial, mas há, de perspetivas de trabalho, mais condições de meios de diagnóstico e tratamento. E mesmo as saídas profissionais são abrangentes, não me parece que haja falta de emprego. Há é uma boa parte de veterinários que não querem ficar cá, porque 3,8% portugueses emigraram e 33,6% estão a pensar emigrar. Apesar disto, há muitas coisas gratificantes”.
“O facto de sermos veterinários não faz com que deixemos de ser médicos” Quem partilha da mesma opinião é Rute Teixeira, que nasceu em Portugal e realizou grande parte do percurso académico no Canadá. Depois de ter tirado uma licenciatura em Biologia, com minor em Teatro, decidiu ingressar no mestrado integrado em Medicina Veterinária. Defendeu a tese de doutoramento em 2019 , sobre a relação homem-cão. “Quis perceber a dinâmica dos tais maus donos, os tutores que, de alguma forma, sem terem noção, não estão a contemplar o melhor para o seu animal de companhia. E nem sempre são aqueles que batem nos animais ou acorrentam-nos”, explica.
“Por exemplo, uma senhora com um Lulu da Pomerânia que o vestiu com um vestido, meias, chapéu, etc. numa tarde de verão. E os cães não conseguem dispersar o calor porque não suam. Por isso, podia ter matado o seu animal”, exemplifica, expressando que algo que a perturba é o facto de muitos tutores não encararem os médicos veterinários como profissionais de saúde “a sério”. “Nós somos médicos. O facto de sermos veterinários não faz com que deixemos de ser médicos. Fazemos formação extensa, internatos, etc. Quando nos desvalorizam, provocam-nos um desgaste emocional muitíssimo elevado”.
“Recordo-me de quando fiz uma recomendação a uma senhora e ela disse-me ‘Está bem. É aquilo que acha, fiz a minha pesquisa e sei aquilo que vou fazer’. Será que as pessoas dizem isto aos médicos de medicina humana?”, questiona, adicionando, à semelhança de Pedro Almeida e Laurentina Pedroso, na entrevista que concedeu ao i nesta edição, que os animais “não têm voz” e tal afigura-se complexo.
“Se falarmos dos animais geriátricos… Custa-nos muito a dor por causa das artroses e outras patologias. Trabalhamos cada vez mais e os tutores estão cada vez mais focados nos seus animais. Lembro-me também de um labrador com cerca de 13 anos que adorava o dono. Ele queixava-se de que o cão não aguentava as corridas. O cão tinha artrite, o tutor permitiu que fizesse todos os exames e as análises, mas não aceitava que o cão não pudesse correr mais com ele”, relata, especificando que a fadiga por compaixão – conhecida também por stress traumático secundário – conduz a que, mesmo nessas circunstâncias, tentem ser “agentes do bem para os animais e também para os donos” mesmo quando estes não aceitam a dor e/ou o envelhecimento dos seus melhores amigos.
“As pessoas perguntam-nos se não gostamos de animais para não fazermos os tratamentos de graça. Dizem que temos uma obrigação. Lembro-me de um tutor que encontrou um animal na rua. Ele tinha encontrado o gato há seis anos e achava que eu tinha de assumir os custos. Mentiu, disse que o tinha encontrado há horas”, recorda a médica veterinária que se encontra mais dedicada ao diagnóstico por imagem, é professora do Ensino Secundário e também do Ensino Superior.
Há outros casos complicados, diz esta veterinária. “Uma vez, vi um animal, um cãozinho, estava com tosse há um ano e meio. Os tutores só o trouxeram quando ele colapsou. Fiz o raio-x e tinha metástases pelo tórax todo. Expliquei aquilo que estava a acontecer. Acusaram-me de ter provocado o problema ao animal! Será que diriam isto aos médicos de medicina humana?”, insiste Rute Teixeira. “Até nos acusam de provocar doenças renais crónicas. Escrevem, nas redes sociais, coisas como “Nunca levem o vosso animal àquele hospital ou àquela clínica. Mataram o meu cão ou o meu gato’. Estivemos a noite toda a esforçarmo-nos, o animal morre-nos nas mãos e acusam-nos!”.
“Como não há a questão de nos reconhecerem como médicos, acham que podem despejar esta mágoa em cima de nós. Não acredito que as pessoas façam isto com maldade. Ninguém perde o seu animal e decide ser mau. A dor é tão grande que a despejam na pessoa que mais ajudou a salvar o animal. Normalmente, somos muito empáticos e sofremos”. O trabalho fora de horas é outra constante. Rute ilustra-o assim: um dia foi atropelada e o marido só estranhou não estar em casa três horas e meia depois porque está habituado a que chegue a casa muito depois da hora prevista. “Ele achava aquilo totalmente normal”.
Deixa por fim um apelo:_“Dizer que qualquer pessoa pode ter um animal de companhia é perigoso: há pessoas que os compram, adotam ou encontram na rua e têm de pôr x de parte todos os meses porque os animais vão adoecer, envelhecer, podem ter acidentes, etc. E aqui os tratamentos são escandalosamente baratos. Fazemos o mesmo hemograma que se faz numa clínica qualquer lá fora. Os donos têm de pagar 10 euros e dizem que quando fazem os deles não pagam nada. É por isso que o Serviço Nacional de Saúde devia sempre, mas sempre, apresentar uma folha aos utentes com os gastos discriminados”.
“Isto só muda se as pessoas puserem a mão na consciência. Ainda há donos que nos dizem coisas como ‘Você não tem direito a chorar pelo meu animal, ele é meu e morreu, eu é que devo chorar’. Portanto, aquilo que conseguimos mudar é a nossa reação. Queremos tentar abrir a porta”, remata. “Somos polivalentes. Nos supermercados, há médicos veterinários que controlam a comida, o leite, etc. Nas lotas, há médicos que dizem que x ou y peixe não pode ser vendido e precisam de proteção policial. Passamos por muito, mas continuamos a lutar e queremos ser respeitados. Até lá, os nossos alunos têm de ter ferramentas para não sofrerem aquilo que sofremos”.