Laurentina Pedroso. “Os médicos veterinários apresentam um risco de suicídio muito superior ao dos restantes profissionais”

Laurentina Pedroso. “Os médicos veterinários apresentam um risco de suicídio muito superior ao dos restantes profissionais”


Para a professora universitária e antiga bastonária, a saúde mental dos médicos veterinários não pode ser descurada em pleno século XXI.


Entre 1979 e 2015, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) analisou as certidões de óbito de 11.620 médicos veterinários. A investigação mostrou que, entre 2000 e 2015, aproximadamente 10% das mortes de médicas veterinárias foram atribuídas a suicídio. Esta taxa, segundo os autores do estudo, leva a que as mulheres veterinárias tenham mais probabilidades de perder a vida para o suicídio do que os seus colegas homens, na medida em que os suicídios entre mulheres são mais raros do que entre homens, na generalidade dos casos que são contabilizados e estudados.

Os investigadores perceberam pois que os veterinários do género masculino têm 2,1 vezes maior probabilidade de morrer por suicídio do que a população em geral, enquanto nas suas colegas do género feminino esta taxa sobe para 3,5.

“As longas horas de trabalho, o excesso de trabalho, as responsabilidades de gestão das clínicas, as expectativas dos clientes e as reclamações, os procedimentos de eutanásia e um mau balanço entre a vida pessoal e profissional” motivam esta opção, avançaram os autores do estudo.

Laurentina Pedroso, Provedora do Animal – tomou posse em julho do ano passado – e diretora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona, defende que o bem-estar dos profissionais que tratam dos animais tem de ser olhado de forma holística. O_fundamental, para a antiga bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários, seria evitar o desenvolvimento de distúrbios psicológicos nesta classe profissional. Para salvar os animais, diz, não podemos desumanizar os seres humanos.

Os dados do relatório “Survey of the veterinary profession in Europe”, da Federação dos Veterinários da Europa, indicam que os médicos veterinários estão a viver muitos momentos dolorosos em termos da deterioração da saúde mental.

É verdade. Tivemos este estudo fundamental, da Federação dos Veterinários Europeus, e não havendo níveis anteriores, sabíamos que estes profissionais estavam sujeitos a um elevado stress. Numa escala de 0 a 10, sobre a ansiedade e o stress no meio de trabalho, a média europeia foi de 7. Em média, 25% procuraram ter intervalos profissionais de uma ou duas semanas para conseguirem lidar com esta pressão e até mesmo o burnout. São dados importantes, mas parece-me que há uma sensibilização global para o assunto. Principalmente, conhecimento dos EUA e por isso é que vamos receber – no evento “O Bem-estar profissional em medicina veterinária”, destinado a médicos veterinários, enfermeiros veterinários e outros profissionais da área, que ocorrerá este sábado – duas colegas norte-americanas que trabalham este tema por meio de uma organização internacional. Este sentimento de desgaste profissional começou a ser entendido, nos últimos anos, como mais alta nos médicos veterinários do que noutras profissões. E, daí, tornar-se algo que está na minha agenda.

Na agenda da Provedora do Animal que também é médica veterinária, ex-bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários e diretora de uma faculdade.

Liderando uma universidade, percebemos que as faculdades têm de preparar os estudantes para situações profissionais que vão encontrar e lhes podem criar uma dificuldade laboral ligada posteriormente a uma pessoal. Isto porque algo que afeta a nossa saúde mental causa-nos um cansaço generalizado. A nível académico – e sempre fomos inovadores neste sentido – é essencial ter eventos desta natureza. O que motiva a existência deste fenómeno? Quando escolhemos esta profissão, fazemo-lo, essencialmente, por paixão: queremos trabalhar com seres que não falam, temos de aprender a entendê-lo. Isto envolve emoções e gosto por ajudar aqueles que parecem mais indefesos. E, quando saltamos desta emoção para a realidade, trabalhamos com eles, lidamos com a morte, o sofrimento, a dor… Há outras profissões que lidam com a dor, mas…

Aquela com que vocês lidam é diferente porque é dupla? Isto é, porque enfrentam a dos seres que não falam e dos seres humanos.

Exatamente. Lidamos com a dor dos animais, do dono e uma incapacidade: enquanto, na medicina humana, a incapacidade económica não invalida o tratamento do doente, na medicina veterinária temos essa componente. Muitas das vezes, o sofrimento do dono é gerado por não ter dinheiro para pagar o tratamento do seu animal. Mas aquele animal é como se fosse um membro da sua família. Entre tratamentos prolongados e a eutanásia… A segunda é a mais escolhida. E não é pelo bem do doente, mas sim porque não há dinheiro para manter o animal vivo. Isto causa um desgaste brutal nos médicos veterinários. Escolhemos esta profissão porque queremos salvar os animais. A estes fatores, juntam-se outros: não há horários. Se há uma urgência, não dizemos: “Ok, são 18h e continuo em casa a fazer x e y coisa”. Não, o horário não existe.

A vertente familiar também fica afetada?

Sim. Temos cada vez mais mulheres médicas veterinárias. Tornam-se ainda mais sensíveis porque vivem uma montanha-russa de emoções. Imaginemos, não vão buscar os filhos à escola ou não estão presentes em determinados momentos porque ficaram a salvar um animal. Estamos a falar essencialmente do clínico que trabalha com animais de companhia, mas há outra face: por exemplo, da pecuária, pois há uma pressão enorme da sociedade devido à forma como os animais são criados. Cada vez é preciso haver mais preocupação com a sustentabilidade e o bem-estar e os médicos não aprendem estes conceitos nas faculdades. Acabam por não ver a sua profissão com bons olhos e a mesma é deturpada por mensagens animalistas: não retratam a realidade, mas pressionam-nos. É muito importante fazer este trabalho de perceber como as instituições de Ensino Superior podem preparar os profissionais para toda esta dinâmica. E há outro problema: existem veterinários que trabalham sozinhos e têm de aprender a gerir um negócio. Não estudaram para isso. Há muitas frentes. O maior problema é negarmos a existência destas situações. Isto existe, mas estamos à procura de soluções. Os médicos veterinários apresentam um risco de suicídio muito superior ao dos restantes profissionais.

Em 2018, um estudo do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), publicado no Journal of the American Veterinary Medical Association (JAVMA), que contou com uma amostra de 11 mil e 620 profissionais, provou que a taxa de suicídio é 3,5 vezes mais alta entre médicos veterinários do que entre todos os outros profissionais.

Temos de identificar este problema. Não podemos diminuir o profissionalismo de um clínico porque teve um dia mau nem podemos permitir que se autoculpabilize. Sabem que poderiam ter feito melhor, mas não foram capazes por vários motivos como não terem capacidade de oferecer tratamentos constantemente. Falamos desta fadiga da compaixão: esta foi primeiramente identificada entre os enfermeiros e, depois, entre os médicos, e sabemos que temos de nos dessensibilizar da dor do outro. E, então, a dessensibilização vai acontecendo progressivamente e parece que já não temos compaixão. Mas temos: nós é que encontramos um mecanismo mental para compensar. É o entendimento holístico, de preparar as pessoas para estas situações, que tem de ser intensificado entre os aspirantes a médicos veterinários e aqueles que já estão no mercado de trabalho. Porque, se não tivermos emoções… Isto não será benéfico para ninguém. Queremos enaltecer o valor desta profissão e, dentro do coletivo, tornar tudo melhor tanto para os profissionais como os donos e animais. E quando falo em melhor, acho que podemos fazer muito mais: sou Provedora do Animal e temos capacidade de ajudar os animais de forma que, indiretamente, ajudará os donos e profissionais. Não temos as soluções que existem para a área humana.

Não se pode desumanizar os profissionais para ajudar os animais.

Claro! Por isso é que temos de fazer um treino de psicologia, autoconfiança, dignidade da profissão e, também, ajudá-los a entender que nós enquanto sociedade criamos soluções para que tenham mais hipóteses de decisão e possam dar mais possibilidades a um animal. A eutanásia por falta de poder económico… Eu própria não a aceito e preciso da tal ajuda. Temos o conhecimento técnico-científico, mas aquele dono, com sofrimento, opta pelo fim da vida do animal. Por exemplo, há idosos que não compram certos medicamentos para terem dinheiro para salvar os cães e gatos. Um médico e um enfermeiro não decidem eutanasiar alguém por não haver dinheiro para manter essa pessoa viva.

Mas os desafios que enfrentam não acabam por ser semelhantes?

Nos picos da pandemia, os profissionais de saúde decidiam quem é que salvavam e quem é que tinha direito a um ventilador. Foi extremamente perturbador, ainda estão a pagar emocionalmente por estas decisões. E nós fazemos isto todos os dias. Naquilo que estiver ao meu alcance, farei tudo para mudar este panorama. No hospital escolar da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona não fica por tratar um animal por falta de dinheiro: nunca dissemos a um dono que, se não tem dinheiro, o animal tem de ser eutanasiado. Com isto, temos aprendido tanto… Por vezes, achamos que têm 50% de probabilidade de se salvarem e entendemos depois que a percentagem era bem mais elevada. E ainda aprendemos a tratar outros animais que venham a apresentar as mesmas patologias. Queremos, como universidade, tirar a pressão dos profissionais nos hospitais escolares e, no fundo, esperar que se trabalhe assim nacionalmente.

E tal não se verifica ainda porquê?

Não se trabalha desta forma em todas as faculdades: são públicas e nós somos privados. Este é um dos meus projetos para o novo ministro enquanto Provedora. Quando o PAN diz, por exemplo, que quer hospitais veterinários públicos… Estes já existem! São os das universidades públicas! Os professores são pagos pelas nossas verbas e os equipamentos também. A questão é que não trabalham do mesmo modo. Temos de ir por fases: não apoio seguramente a postura do PAN porque há crianças a passar fome no nosso país e outras a comerem apenas uma refeição por dia.

Como é que se equilibram minimamente os pratos da balança?

Temos de ter cuidado com estes extremismos animalistas. Enquanto houver problemas como este, atenção ao dinheiro que se gasta… Mas podemos fazer muito sem gastar dinheiro! Quem pode tratar o pagamento, paga. Estou a falar de animais em risco: de famílias carenciadas, aqueles que são recolhidos pelas câmaras municipais, outros que são abandonados… Porque as autarquias não têm recursos humanos nem materiais para responder a tudo. Ajudamos muitas como a de Vila Franca de Xira ou de Alenquer. Não conseguem salvar os animais, mas nós conseguimos: tanto nós como as outras faculdades temos os melhores profissionais! Podemos proporcionar exames mais especializados, análises, cirurgias… Mas reforço: não somos um país rico, não há hospitais públicos em mais lado nenhum do mundo e isto do PAN é um extremo. Podemos é criar soluções: propus a criação destes hospitais municipais espalhados por todo o país. É muito interessante darmos uma ideia destas, mas o maior custo num hospital não é aquilo que gastamos para tratar um animal: são os milhões de euros em honorários dos clínicos. Temos muito a resolver na sociedade, mas podemos fazer mais e melhor. A minha filosofia é que podemos mudar a vida de milhares de famílias e animais.

Até porque os donos ficam prejudicados psicologicamente. E se este processo for alterado, tudo pode mudar.

Ainda hoje não me esqueço da decisão de eutanasiar um animal meu: é um dos atos mais altruístas e de amor incondicional. Decidi pelo bem dele e não meu. Eu sou uma profissional qualificada que devia saber lidar com estas emoções. Sofri eu, sofreram os meus colegas… Assisti à morte de um ser que amava. Os idosos sensibilizam-me particularmente porque o impacto é muito maior do que numa família jovem que ainda tem idade para ultrapassar este luto.

Há recetividade por parte dos decisores políticos?

Vou esperar que Deus me dê muita força e coragem para continuar a lutar pelos animais. Penso que este ministro tem uma sensibilidade muito grande para a causa animal porque já teve este pelouro numa câmara municipal. Há que mudar mentalidades, lobbies e outros assuntos. E é essencial que o primeiro-ministro também abrace esta causa e, honestamente, acredito que está a fazê-lo porque tem uma enormidade de coração em relação aos animais. Se assim não fosse, não teria tido a coragem de fazer as alterações que fez depois do incêndio nos abrigos ilegais de Santo Tirso.

E além dos animais de companhia, as restantes espécies serão tidas em conta?

Quando falo nestes hospitais públicos, não tenho em mente que ajudem apenas animais de companhia: é para ajudar equídeos, de espécies pecuárias, etc. que são recolhidos e ficam, grande parte das vezes, sob a tutela dos municípios e da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV). Estes animais também precisam de auxílio.

Se ainda existem lacunas na ajuda prestada aos animais de pequeno porte, é possível salvar os de grande porte?

Nos hospitais escolares, temos capacidade para ajudar todos. Se estamos a falar de abater um animal de companhia e já é difícil, abater um cavalo… É igualmente muito doloroso. Abater animais porque não há dinheiro não é solução! É óbvio que a dimensão do problema é muito maior nos animais de companhia, até porque os outros animais, quando recolhidos, são considerados espécies pecuárias e a decisão pode passar pelo abate e pela entrada na cadeia alimentar. Como Provedora, tentarei combater isto. Estes animais, que já sofreram tanto, devem ser ajudados e terminar a sua vida onde possam ter bem-estar. Por exemplo, santuários, quintas pedagógicas, reservas… Há muito a fazer!

Em abril do ano passado, o i publicou a reportagem “Este país não é para cavalos” e abordou o caso dos equídeos, explicando que, principalmente, no Sul do país, sofrem maus-tratos com frequência e morrem sem auxílio médico ou carinho.

Custa-me muito. Se o socorro a um cão ou a um gato que está atropelado numa estrada, por exemplo, já é moroso, a um cavalo é pior. Acabam por morrer ou ter de ser eutanasiados porque o socorro não é prestado de forma efetiva. E podia acontecer no local. uma das propostas que tenho é a possibilidade de termos clínicas móveis que se desloquem aos locais dos acidentes ou das catástrofes. Os animais não têm possibilidades de sobreviver porque passam muito tempo sem socorro! Tenho enormíssimas expectativas em relação a este governo trabalhar a causa animal: tem uma maioria parlamentar e, penso eu, só não aceitará as propostas com que avancei se não puder. Infelizmente, devido à fadiga por compaixão e as restantes dificuldades, há veterinários que acham que é normal abater os animais. São profissionais que já não têm sensibilidade porque passaram por muito.

No entanto, enquanto Provedora, promete que não vai desistir.

Não, nunca. Temos imenso trabalho pela frente, mas tudo pode resultar. O meu conceito é que a saúde é indissociável do bem-estar. A sociedade pensa que não nos preocupamos, mas trata-se da exaustão. Estamos no século XXI, temos um governo de maioria absoluta, há poucos provedores do animal na Europa e eu tenho a oportunidade de desempenhar este cargo. Ao contrário de frases políticas e bonitas que ganham votos como “Vamos acabar com a fome”, pensamos em como fazer com dignidade, equilíbrio e saúde mental. É preciso sabermos implementar tudo no terreno e eu sei fazer isto. Já como bastonária, criei o cheque veterinário que, hoje em dia, é muito divulgado. Atualmente, a sociedade já não aceita certo tipo de coisas que aceitava antes e, por isso, temos de ter a rede de apoio móvel e outras medidas colocadas em prática para mudar a legislação e apostar na medicina animal como se aposta na humana, com meios capazes.