“Teremos a máquina de café, o micro-ondas e uma impressora 3D. Compra-se um pacote e imprime-se um rosbife”

“Teremos a máquina de café, o micro-ondas e uma impressora 3D. Compra-se um pacote e imprime-se um rosbife”


David Julian McClements investiga novas gerações de alimentos na Universidade de Massachusetts. Em entrevista ao i, abre as portas para o futuro.


David Julian McClements é professor no departamento de Ciência da Alimentação na Universidade de Massachusetts Amherst, uma referência na nanotecnologia alimentar e, nas suas palavras, uma espécie de arquiteto da comida. Não estranha quando lhe falamos de ovos 100% vegetais anunciados por uma empresa portuguesa: também fazem parte do cardápio do seu laboratório. Trabalham em formas de potenciar as propriedades dos alimentos a nível molecular e replicar texturas, sabor e valor nutricional em alternativas de proteína animal à base de plantas. Em entrevista ao i por Zoom, depois de o vermos numa TEDTalk em que adianta que comer cenouras ainda não faz bem aos olhos mas poderá vir a fazer, diz que nunca viu tanto entusiasmo como agora nas ciências da alimentação. Em 2019 publicou Future Foods (Springer) e prepara-se para lançar um manual técnico sobre como desenhar a próxima geração de alimentos “plant-based”. Acredita que vamos poder fazê-los em casa, com uma impressora 3D ao lado do micro-ondas. E um dia, quem sabe, talvez possamos provar hambúrgueres de dinossauro.

 

O que vamos comer em 2050?

Penso que vamos comer muito menos carne e mais coisas que poderão parecer-se com carne, o mesmo com o leite, ovos, laticínios, peixe. Se as pessoas quiserem é provável que ainda consigam comer essas coisas, mas haverá mais produtos similares ou à base de plantas ou provenientes de agricultura celular, criados em tubos de ensaio em laboratório ou por processos de fermentação. Parece claro hoje que não será muito sustentável continuarmos a consumir tanta carne.

As preocupações ambientais vão ser o motor dessa transformação?

Há três fatores que levam habitualmente as pessoas a querer passar a ter uma alimentação à base de plantas. A sustentabilidade ambiental talvez seja o mais importante, mas é variável. Há quem tenha sobretudo preocupações éticas: muitas pessoas veganas são contra a forma como os animais são criados para serem abatidos. E um terceiro fator mais questionável são as questões de saúde. Há quem defenda que uma alimentação à base de plantas é melhor do que uma alimentação normal, mas isso depende muito dos alimentos processados que se come. Há uns muito saudáveis e outros que não são nada saudáveis. Há uns dias estava a ver um produto de peixe vegetal, parecia mesmo peixe, com imenso ómega 3, mas tinha zero de proteína. Basicamente era amido e gordura saturada. Parecia bom mas o valor nutricional era muito baixo. Acho que o futuro desta área vai passar muito por conseguir desenhar produtos que sejam saudáveis e consigam de facto substituir a proteína animal.

Hoje vemos hambúrgueres à base de leguminosas mas quando falamos de carne produzida em laboratório, não é dar à soja ou ao grão o formato de nuggets. Que tipo de produtos serão mais comuns?

Há três ou quatro formas de fazer proteína de forma artificial. Uma delas é extraí-la de plantas, a outra é tirar células de animais e cultivá-las num tubo de ensaio ou num tanque de fermentação, que é aquilo a que se chama carne criada em laboratório. A terceira é a agricultura e pecuária celular de que falava, em que se usam micro-organismos, mete-se uma parte do ADN de um animal e passam a produzir proteína animal e depois pode extrair-se essa proteína que nunca esteve em animais para produzir alimentos. Há outras formas de produzir substitutos de proteína por exemplo usando micro-fungos – é o caso do quorn, que foi desenvolvido no Reino Unido, que no fundo são pequenos cogumelos com uma estrutura muito parecida com a carne.

O que é que já está no mercado além do quorn?

Temos essencialmente produtos à base de plantas e ainda não de animais mas já com algumas destas técnicas. Aqui nos EUA temos duas grandes cadeias, a Impossible Foods e Beyond Meat. A Impossible Foods usa agricultura celular para obter leg-hemoglobina, que é como a hemoglobina e mioglobina do animal (as proteínas que dão a cor vermelha ao sangue e à carne), mas da soja. Como não conseguem produzi-la com feijões de soja, fermentam levedura para depois extrair a molécula.

Quando lhe falei dos ovos portugueses, explicou que também já trabalharam nessa área na universidade.

Há por exemplo uma empresa aqui em São Francisco que se chama Just Eggs, que trabalha com ovos à base de plantas. Tem uma versão líquida que basta pôr na frigideira e fazer ovos mexidos e outros vêm em quadrados, dá para pôr no micro-ondas e fazer uma sandes ou algo assim. São bastante bons, sou vegetariano e um cozinheiro um bocado preguiçoso por isso tudo o que dê para meter no micro-ondas e fique bom é ótimo.

Então em 2050 continuaremos a usar o micro-ondas.

Sim, e outra área de que não falei há pouco e que está a avançar é a impressão de alimentos. Provavelmente teremos a máquina de café, o micro-ondas e depois uma impressora 3D. Compra-se um pacote com a proteína, mete-se na impressora e imprime-se, sei lá, um rosbife ou qualquer coisa que se queira comer.

Como os astronautas?

Sim e foi exatamente nessa área que vi isto pela primeira vez. Fui convidado para uma conferência em Boston e estava lá o responsável pela Estação Espacial Internacional que a certa altura dizia que a pior coisa de ser astronauta é que a comida é péssima. Entretanto a partir da experiência dos astronautas foi criada uma start-up em Boston que trabalha em impressão de alimentos, um pouco como no Star Trek, mas em que os astronautas poderão mesmo imprimir a comida que querem comer [em 2017, a Beehex apresentou um robô capaz de imprimir pizzas]. É preciso pensar que a comida tem um impacto muito emocional. Se se retira o sabor, a textura, as pessoas ficam deprimidas.

Nunca será reduzida a um comprimido?

Acho que há esta dimensão emocional e cultural na alimentação que não nos levará por aí, o que precisamos é de alimentos de qualidade e sustentáveis. Hoje em dia há um grande movimento contra os alimentos processados, o que em parte se justifica porque comer muitos alimentos processados é mau para a saúde, aumenta o risco de diabetes, colesterol, etc. Mas o problema está nos produtos. No futuro teremos alimentos processados, a diferença é que podemos tentar que sejam melhores e mais saudáveis à medida que percebemos melhor a relação entre saúde e alimentos e trabalhamos os produtos nessa direção.

Durante a pandemia muitas pessoas viraram-se para hortas nas varandas, há um mercado crescente de produtos biológicos. Isso poderia ser suficiente ou os tais produtos processados “bons” terão sempre de fazer parte da equação?

Acho que isso também fará parte do futuro da alimentação, vemos muitas pessoas a apostar nisso e projetos para hortas verticais nas cidades, em que podemos ter torres com hortas em parques de estacionamento, nos telhados. Comermos frutos e vegetais frescos continuará a fazer parte de uma alimentação saudável e deve fazer. A questão é que muitas pessoas não têm tempo, ou não têm dinheiro ou não gostam de cozinhar. Portanto se comemos comida processada, o pensamento deve ser como torná-la melhor.

Qual foi a coisa mais estranha que já provou nestas suas andanças pelo mundo da comida do futuro?

Não provei, mas acho que a coisa mais estranha que vi até agora foi o exemplo de carne produzida em laboratório a partir das células de um frango. É um vídeo da Just Egg em que apresentam o protótipo e explicam o processo em que usam as células de um frango chamado Ian para produzir carne e no final vemos o frango a andar à volta da mesa enquanto estão a comer nuggets que vieram dele. Cultivaram as células num tubo de ensaio e o frango continua vivo!

Podemos pensar que podemos fazer isso com todos os animais? Por exemplo as pessoas que têm um coelho com animal de estimação e deixam de comer coelho por isso poderiam mudar de ideias…

Até nos poderemos comer a nós próprios se quisermos (risos). Conseguimos cultivar qualquer célula em laboratório.

Pode ser o início do fim do vegetarianismo?

Para algumas pessoas sim. Lá está, muitas pessoas são vegetarianas por razões éticas e ambientais. Se pudermos produzir carne a partir de nós próprios, de frangos ou de outra coisa qualquer e ninguém for morto e for sustentável para o planeta, por que razão não comeríamos carne? Agora pessoalmente eu que sou vegetariano acho que mesmo assim será difícil. Se agora tivesse carne produzida em laboratório não sei se passaria a consumi-la. Não sei exatamente porquê, talvez me habituasse. A única coisa que provei foram insetos e faz-me confusão. Uma vez fui à escola da minha filha falar sobre o futuro da alimentação e levei uns snacks de insetos. Perguntei aos miúdos: querem o snack que vos vai dar ataques cardíacos e problemas de saúde ou o que tem proteínas e coisas boas e todos escolheram o saudável. Os miúdos foram ótimos, comeram aquilo tudo, as batatas fritas e os insetos. Eu também provei e pernas de insetos… é um bocado esquisito.

Além de alternativas de proteína à base de plantas, estuda formas de transformar alimentos em medicamentos. Porque é que comer cenouras não faz bem aos olhos e qual foi a solução que encontraram?

Quando se come uma cenoura crua, a maioria das moléculas saudáveis vai diretamente para a sanita. Chamamos-lhes hidrofóbicas, não podem ter água à volta e por isso não se dissolvem bem no trato gastrointestinal e o corpo não consegue absorvê-las. O que fazemos é encapsulá-las em pequenas partículas de gordura que permitem que se sejam digeridas rapidamente libertando o carotenoide, que assim chega ao olho e funciona então como um filtro solar natural: absorve a luz ultravioleta e luz azul, que é o que danifica os olhos.

Já há cenouras aperfeiçoadas à venda?

Nós trabalhámos no desenvolvimento da tecnologia e há empresas que estão a tentar fazer produtos a partir disto. Somos uma universidade, raramente desenvolvemos produtos.

Não houve nenhuma start-up a sair do seu laboratório? Nunca se meteu nisso?

Estou demasiado ocupado, mas uma das investigadoras que trabalharam no meu laboratório começou agora uma empresa baseada na nossa investigação e está a começar a ter financiamento por isso poderá acabar por vir a fazer algumas coisas.

Há outros alimentos em que esse tipo de tecnologia pudesse ser útil?

É uma questão que se coloca com a vitamina A, D e E que não gostam de estar em água e por isso pensamos que encapsulá-las em gordura poderia levar a uma maior absorção e aí entra a nanotecnologia. E se pensarmos que a deficiência de vitamina D é muito comum nos países nórdicos, poderá ser uma forma de fortificar os vegetais.

Torná-los mais eficientes?

Costumamos chamar-lhe arquitetura alimentar. No fundo é perceber quais são as peças dos alimentos e tentarmos pô-las numa disposição que nos traga efeitos novos: pode ser fazer com que as coisas saibam melhor, que tenham um maior prazo de validade e assim haja menos desperdício, aumentar os efeitos positivos para a saúde, por exemplo melhorando a capacidade de absorção nesses casos de que estava a falar.

Por exemplo os flavonóis do vinho podiam ser potenciados e torná-lo num medicamento?

Se não morrer de cancro do fígado primeiro… É preciso pensar sempre no equilíbrio entre benefícios e malefícios. É verdade que temos uma molécula chamada resveratrol no vinho tinto, mas para tirar benefícios disso é preciso beber 50 copos de vinho por dia ou algo assim. O que podemos fazer é extrair essa molécula e colocá-la numa matriz em que podemos pensar em tê-la quantidade necessária numa bebida em vez de beber 50 copos de vinho. Mas muito disto ainda precisa de ser demonstrado: há algumas evidências de que faz bem, mas quando se fazem ensaios randomizados de grande dimensão muitas vezes não se encontram efeitos robustos.

Falou de nanotecnologia.Temas como a edição genética e transgénicos têm sido controversos. Espera resistência por parte dos consumidores?

Eu também tinha bastantes reservas em relação à engenharia genética até começar a investigar e a recolher informação para o livro Future Foods sobre efeitos benéficos e potenciais efeitos adversos, e penso que haverá bastantes benefícios. Evidentemente que, como qualquer nova tecnologia, temos de ser cuidadosos, mas hoje nos EUA todos os dias comemos alimentos geneticamente modificados. 90% da soja ou 90% do milho são geneticamente modificados e não temos evidências de efeitos negativos. Já temos maçãs que não oxidam, as maçãs Arctic, e isso deve-se à engenharia genética: trocaram os genes da maçã responsáveis pela enzima que fazia com que ficasse castanha. Coisas como esta podem reduzir o desperdício alimentar. Aqui nos EUA não parece haver uma grande resistência. Ainda há poucas semanas perguntei aos alunos numa aula se comeriam comida geneticamente modificada e a maioria disse que sim, que não vê problema. Na Europa talvez haja mais resistência.

Vi um artigo publicado há dias em que o responsável de uma das empresas que está a trabalhar em carne artificial a partir de células animais nos EUA, a Upside Food, dizia que “inventámos” as vacas que comemos hoje há 10 mil anos e que este é o próximo salto. Não costumamos pensar que houve mão humana por trás das coisas “naturais” que hoje comemos.

Sim, basta ver o trigo ou o milho. O milho doce que comemos hoje é completamente diferente do milho que se comia há milhares de anos na América do Sul. Foram milhares e milhares de anos de seleção, basicamente de engenharia genética mas de uma forma muito lenta. Hoje conseguimos perceber o papel de cada gene, editar genes, tirar um ou dois genes sem que isso tenha impacto e com isso aumentar as colheitas e a resiliência das plantas, o que será extremamente importante para a segurança alimentar até perante as alterações climáticas. Podemos desenvolver plantas mais resistentes às secas que continuem a alimentar o mundo.

O seu novo livro o que traz?

É mais técnico. É sobre como formular alimentos à base de plantas, toda a ciência por detrás disso, seja peixe, queijo, ovos, como trabalhar as proteínas, do ponto de vista molecular e nutricional.

Vê alguma coisa que possa correr mal? As células de um porco continuarem a crescer dentro de nós?

Nada assim tão dramático. A questão tem sido que se passarmos de uma dieta à base de proteína animal ou omnívora para uma dieta à base de plantas isso pode ter um grande impacto porque as proteínas da carne e dos vegetais são diferentes e penso que o que deve ser tido em conta nesta mudança é que o importante não é apenas como é que as coisas sabem e o aspecto que têm e o seu valor nutricional e como se comportam no nosso corpo para que sejam equivalentes ou melhor.

Imagina que a maioria da população passará a ter uma alimentação à base de plantas? Hoje no Reino 11% da população é vegetariana, nos EUA 5%.

Sim, continua a ser uma minoria. Espero que sim, porque teria ganhos ambientais, mas para isso temos de ter produtos de qualidade, que sejam acessíveis e por isso há muito trabalho pela frente. Se um dia chegarmos ao supermercado e tivemos um rosbife animal e outro à base de plantas e se tiverem o mesmo aspeto, o mesmo sabor e custarem o mesmo, ou se o vegetal for mais barato, penso que conseguiremos ter grandes ganhos ambientais. E a verdade é que nunca vi tanto entusiasmo nas ciências da alimentação. Todas as semanas recebo um telefonema de uma start-up ou de uma grande empresa interessadas nesta área e tem havido muito investimento. Está a acontecer nos EUA, na Europa, na Austrália, na China. Portanto vai acontecer, só não sei quão rápido será.

É a maior revolução na alimentação nos últimos milénios?

Um milhão de anos não diria, mas em muito tempo.

Estava a dizer milénios, não a recuar assim tanto – mais um pouco e estaríamos no tempo dos dinossauros.

Se gosta do Parque Jurássico, se conseguíssemos um pouco do ADN deles poderíamos ter hambúrgueres de dinossauro.