Denunciar e julgar em Andamarca


Há que ter medo das multidões, há que fugir, mesmo que em princípio lhes assistarazão, porque todas acabam por se transformar em bestas irracionais.” 


Nestes tempos, muito têm vindo à baila questões sobre denúncias e denunciantes (até há agora uma lei para a sua proteção), por um lado, e, por outro, a necessidade ou a conveniência de ouvir a vox populi (seja ou não a vox Dei) nas decisões de (certos) processos. Muito há a dizer sobre uma coisa e outra (pois são temas complexos e sérios), mas vou ser muito sintético e citar palavras alheias. Sobre a síntese, creio que não é preciso alongar-me para que o leitor possa tirar as suas conclusões sobre o que quero, hoje e aqui, significar. Sobre o recurso a palavras alheias, das duas uma, e levem à conta do que entenderem: ou é preguiça ou é vénia a palavras melhores do que aquelas que eu alguma vez poderia alinhar. São de Vargas Llosa as palavras, do seu livro Lituma nos Andes, onde figura um episódio passado em Andamarca, em dois momentos, um primeiro em que vem o Sendero Luminoso e passa a população pelos seus métodos de julgamento, um segundo em que, depois daquele partir, vêm as forças do Estado e tratam da coisa a seu modo.

Do primeiro momento, escolho citar o seguinte (a tradução é de Miguel Serras Pereira): “Pouco a pouco, rompendo a sua timidez, a sua confusão, incitados pelo próprio medo que sentiam, pelo clima exaltado e por motivações mais obscuras – velhas querelas, ressentimentos soterrados, invejas surdas, ódios de família –, os moradores foram ganhando coragem para pedir a palavra.” E também: “Por volta do meio-dia, já muitos andamarquinos se atreviam a aparecer no meio da praça e a apresentar as suas queixas, fazer as suas recriminações e apontar a dedo os maus vizinhos, os maus amigos, os maus parentes. A audácia crescia enquanto proferiam os seus discursos; a voz vibrava-lhes quando recordavam os filhos que tinham perdido, os animais mortos pela seca e pelas pragas ou apenas como havia de dia para dia cada vez menos quem lhes comprasse, e mais fome, mais doentes, mais crianças no cemitério.” E ainda: “Agindo, participando, executando a justiça popular, os andamarquinos iriam tomando consciência da sua força. Era um destino irrevogável. Deixavam de ser vítimas, começavam a ser libertadores.” Finalmente: “Quantas das acusações eram verdadeiras, e quantas não passavam de invenções ditadas pela inveja e o rancor, produto da efervescência por que todos se sentiam impelidos a competir, revelando as crueldades e as injustiças de que haviam sido vítima? Nem eles próprios saberiam dizê-lo…”

E, enquanto isto, don Medardo Llantac escondia-se dentro da sepultura recente do seu primo. Na verdade, às vezes, perante avalanchas destas, não há outra hipótese se não fazer-se de morto, não tentando parar pedras, lama e lava com razões ou mãos indefesas e inúteis. Aliás, e intercalando a citação de outro autor, de um também belíssimo livro, mas mais recente (Javier Marías, Tomás Nevinson, tradução de Vasco Gato), bem sabemos o seguinte: “As pessoas em massa costumam ser repugnantes, contagiam umas às outras as suas baixezas e o seu ressentimento, fomentam-nos, desinibem-nos e lançam-nos com fúria contra quem for. Há que ter medo das multidões, há que fugir, mesmo que em princípio lhes assista razão, porque todas acabam por se transformar em bestas irracionais.” Como bem explicou Ortega y Gasset, o homem-massa é amiúde aquele que julga saber de tudo e, afinal, não sabe de nada. 

Prosseguindo, nos Andes. Os senderistas/terrucos foram-se embora, e 48 horas depois chegou a Andamarca a patrulha de guardas republicanos e de guardas civis. E então começaram a pedir explicações sobre a paródia de julgamento, as execuções e os castigos, e sucederam-se as hesitações, confusões, omissões, acusações e traições do costume nestas coisas da turbamulta. Escreve Vargas Llosa: “Nessa noite, a coexistência viciada de Andamarca deu de si. Nas casas, nas esquinas, nas ruas, nas imediações da praça onde todos apareciam a espreitar os qua saiam do salão comunal, rebentaram discussões, disputas, acusações, insultos, ameaças. Houve safanões, unhadas e murros…

Os guardas republicanos e os guardas civis não intervinham… Desdenhosos ou indiferentes, viam os vizinhos chamar-se uns aos outros assassinos, cúmplices, terroristas, caluniadores, traidores, cobardes e passarem depois a vias de facto, sem mexerem um dedo para os separar. Os interrogados terão contado tudo, ressalvando as suas responsabilidades o melhor que souberam – quer dizer, agravando as responsabilidades dos outros …” E assim sucede, muitas vezes. Há que ler. E refletir.
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira

Denunciar e julgar em Andamarca


Há que ter medo das multidões, há que fugir, mesmo que em princípio lhes assistarazão, porque todas acabam por se transformar em bestas irracionais.” 


Nestes tempos, muito têm vindo à baila questões sobre denúncias e denunciantes (até há agora uma lei para a sua proteção), por um lado, e, por outro, a necessidade ou a conveniência de ouvir a vox populi (seja ou não a vox Dei) nas decisões de (certos) processos. Muito há a dizer sobre uma coisa e outra (pois são temas complexos e sérios), mas vou ser muito sintético e citar palavras alheias. Sobre a síntese, creio que não é preciso alongar-me para que o leitor possa tirar as suas conclusões sobre o que quero, hoje e aqui, significar. Sobre o recurso a palavras alheias, das duas uma, e levem à conta do que entenderem: ou é preguiça ou é vénia a palavras melhores do que aquelas que eu alguma vez poderia alinhar. São de Vargas Llosa as palavras, do seu livro Lituma nos Andes, onde figura um episódio passado em Andamarca, em dois momentos, um primeiro em que vem o Sendero Luminoso e passa a população pelos seus métodos de julgamento, um segundo em que, depois daquele partir, vêm as forças do Estado e tratam da coisa a seu modo.

Do primeiro momento, escolho citar o seguinte (a tradução é de Miguel Serras Pereira): “Pouco a pouco, rompendo a sua timidez, a sua confusão, incitados pelo próprio medo que sentiam, pelo clima exaltado e por motivações mais obscuras – velhas querelas, ressentimentos soterrados, invejas surdas, ódios de família –, os moradores foram ganhando coragem para pedir a palavra.” E também: “Por volta do meio-dia, já muitos andamarquinos se atreviam a aparecer no meio da praça e a apresentar as suas queixas, fazer as suas recriminações e apontar a dedo os maus vizinhos, os maus amigos, os maus parentes. A audácia crescia enquanto proferiam os seus discursos; a voz vibrava-lhes quando recordavam os filhos que tinham perdido, os animais mortos pela seca e pelas pragas ou apenas como havia de dia para dia cada vez menos quem lhes comprasse, e mais fome, mais doentes, mais crianças no cemitério.” E ainda: “Agindo, participando, executando a justiça popular, os andamarquinos iriam tomando consciência da sua força. Era um destino irrevogável. Deixavam de ser vítimas, começavam a ser libertadores.” Finalmente: “Quantas das acusações eram verdadeiras, e quantas não passavam de invenções ditadas pela inveja e o rancor, produto da efervescência por que todos se sentiam impelidos a competir, revelando as crueldades e as injustiças de que haviam sido vítima? Nem eles próprios saberiam dizê-lo…”

E, enquanto isto, don Medardo Llantac escondia-se dentro da sepultura recente do seu primo. Na verdade, às vezes, perante avalanchas destas, não há outra hipótese se não fazer-se de morto, não tentando parar pedras, lama e lava com razões ou mãos indefesas e inúteis. Aliás, e intercalando a citação de outro autor, de um também belíssimo livro, mas mais recente (Javier Marías, Tomás Nevinson, tradução de Vasco Gato), bem sabemos o seguinte: “As pessoas em massa costumam ser repugnantes, contagiam umas às outras as suas baixezas e o seu ressentimento, fomentam-nos, desinibem-nos e lançam-nos com fúria contra quem for. Há que ter medo das multidões, há que fugir, mesmo que em princípio lhes assista razão, porque todas acabam por se transformar em bestas irracionais.” Como bem explicou Ortega y Gasset, o homem-massa é amiúde aquele que julga saber de tudo e, afinal, não sabe de nada. 

Prosseguindo, nos Andes. Os senderistas/terrucos foram-se embora, e 48 horas depois chegou a Andamarca a patrulha de guardas republicanos e de guardas civis. E então começaram a pedir explicações sobre a paródia de julgamento, as execuções e os castigos, e sucederam-se as hesitações, confusões, omissões, acusações e traições do costume nestas coisas da turbamulta. Escreve Vargas Llosa: “Nessa noite, a coexistência viciada de Andamarca deu de si. Nas casas, nas esquinas, nas ruas, nas imediações da praça onde todos apareciam a espreitar os qua saiam do salão comunal, rebentaram discussões, disputas, acusações, insultos, ameaças. Houve safanões, unhadas e murros…

Os guardas republicanos e os guardas civis não intervinham… Desdenhosos ou indiferentes, viam os vizinhos chamar-se uns aos outros assassinos, cúmplices, terroristas, caluniadores, traidores, cobardes e passarem depois a vias de facto, sem mexerem um dedo para os separar. Os interrogados terão contado tudo, ressalvando as suas responsabilidades o melhor que souberam – quer dizer, agravando as responsabilidades dos outros …” E assim sucede, muitas vezes. Há que ler. E refletir.
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira