Choveu toda a noite como se Deus tivesse finalmente resolvido lavar o sótão. E bem precisa. Depois, quando acordei, fímbrias de céu azul dependuravam-se sobre o Sado e os pardais vieram, em bandos, tomar o seu pequeno-almoço de arroz Cigala no parapeito da varanda. Sabe-me bem este silêncio do sábado, apenas recortado pelo piar dos pássaros e por uma ou outra voz que me chega lá de baixo, da Avenida João Soares Branco, que é a marginal, ou o soar das horas nos sinos da igreja de Santiago.
Sabe-me bem este silêncio repartido com o meu filho Afonso, todo ele de uma profunda bondade como o seu bisavô Joaquim, esse anjo que continuará para sempre pousado no meu ombro. De cada vez que o tempo me traz uma ansiedade de Índia, penso no que aqui deixo quando parto, e aquilo que deixarei quando um dia fizer a viagem sem regresso. Porque, eu sei, lá no íntimo, que haverá uma vez, uma última vez, que não irei voltar, e ficar para sempre enrolado como num casulo naquele sítio mágico e indescritível onde consegui recuperar a adolescência. Com mar, sempre com mar, não sei viver sem mar.
Ou seja, estou aqui a prazo. Não estamos todos? A prazo nos lugares e na vida. Impreparados para a peste e para a guerra, sempre apanhados de surpresa de cada vez que algo vem perturbar aquela vida-vidinha que mastigamos teimosamente como uma pastilha elástica, esperando que ela volte a ter o mesmo sabor de que quando a metemos na boca.
Escrevo, escrevo todos os dias, também por exercício. Leio, leio sempre, porque preciso de novas palavras e novas prosódias. Como agora a de Andrei Béli, pseudónimo de Boris Bugáev, um dos mestre da prosa ornamentada russa. É um vício antigo: leio tudo sobre a Índia, leio todos os autores russos que encontro. Só não faço como Woody Allen: “Estou a tirar um curso de literatura rápida. Li Guerra e Paz em 15 minutos. Tem a ver com a Rússia!”.