Magistraturas, democracia e política


Não parece aceitável a perspetiva de criar um cordão sanitário entre o exercício da magistratura e a atividade política e administrativa em geral.


De há muito, e nos últimos tempos com mais evidência, que alguns magistrados têm manifestado algum desconforto com o facto de outros deles desempenharem funções governativas e, depois, regressarem ao exercício da sua atividade nos tribunais ou no MP.

A questão da relação entre as magistraturas e o sistema político não tem sido fácil desde que, em 25 de Abril de 1974, Portugal abraçou a democracia.

Do tempo da ditadura, não nos ficaram, contudo, muitas notícias de igual desconforto manifestado por magistrados devido às relações promíscuas então existentes entre a política e a justiça.

Já assim não aconteceu, reconheça-se, com a advocacia que, em alguns momentos, corporizou, coletiva e individualmente, atitudes de coragem na denúncia do papel que o sistema judiciário existente à época cumpria.

O incómodo que alguns magistrados vêm assinalando poderá, até, ter alguma justificação.

Há, com efeito, no nosso regime democrático, demasiados casos – e alguns bem graves – de pouco respeito de alguns políticos para com as leis que nos governam.

Nunca, porém, aos magistrados de ambas as magistraturas que, em democracia, exerceram funções de ministro foram, alguma vez, assacadas condutas suspeitosas, antes e depois de tal desempenho.

Recordo aqui, a título de exemplo, alguns nomes prestigiados das magistraturas que, como outros, nunca foram alvo de qualquer tipo de insinuação, no que diz respeito aos atos que protagonizaram como governantes e, depois deles, à forma como, com total isenção, voltaram a exercer a sua profissão de magistrados: Pedro Macedo, Menéres Pimentel e Laborinho Lúcio.

O mesmo não se poderá dizer de uns tantos – poucos – magistrados, que nunca tendo exercido quaisquer funções de natureza político-administrativa, acabaram por, visivelmente, não honrar a função judicial que exerciam.

Uns por causa da política, outros do futebol, outros sabe-se lá porquê.

Assim, se se compreende a preocupação de certos magistrados – como de resto de todos os cidadãos – com a forma como, em demasiados casos, é exercida a atividade política, parece menos aceitável que esse cuidado possa, de alguma maneira, ser associado ao desempenho por magistrados de funções executivas.

O problema só pode, pois, residir na extrapolação popular – e populista – que, do mau desempenho de alguns políticos, se faz para a atividade política em geral.

Ora, um tal raciocínio é, além de injusto para a maioria dos políticos, perigoso para a própria ideia e prática institucional da democracia.

Não parece, por isso, aceitável que, com fundamento em tais impressões, se defenda a criação de um cordão sanitário entre o exercício da magistratura e a atividade política e administrativa em geral.

Os magistrados, todos os sabemos, não são anjos – têm sexo – e têm experiências pessoais e convicções próprias, que, inclusive, alguns deixam transparecer, a propósito ou a despropósito, nas peças processuais que subscrevem.

Por serem juízes ou procuradores, não adquirem, nem beneficiam, além disso, de nenhum certificado de santidade que possa ser necessariamente manchado pelo exercício de outras funções.

Convém, aliás, recordar que, em alguns países europeus – como no Reino Unido -, o recrutamento dos magistrados se faz entre candidatos que exerceram, primeiramente, na advocacia: aí a carreira de magistrado começa tarde e fundada, apenas, na experiência profissional antes adquirida na vida forense.

Noutros – como a Alemanha – os magistrados podem, inclusive, estar filiados em partidos e assumi-lo publicamente para que, como aconteceu durante o nazismo, não se refugiem numa falsa apoliticidade quando exercem, sem honra nem glória, as suas funções judiciais.

Os alemães de hoje preferem saber o que, realmente, pensam os magistrados que lidam com os seus processos: nesse conhecimento reside a transparência e também o esforço da isenção e da responsabilidade dos magistrados.

Foi, aliás, também por causa dessa falsa neutralidade, que, na Europa do pós-guerra e mais tarde, já nos anos setenta, se procurou desenvolver o associativismo judiciário pluralista como forma de integração e participação específica dos magistrados na discussão pública democrática. 

Em Portugal, depois de instaurada a democracia, os magistrados de ambas as magistraturas optaram por se organizar em associações únicas.

Neste aspeto, as magistraturas portuguesas consagraram, em comparação com outros países europeus, um modelo quase ímpar de associativismo.

Nestes últimos existem, em geral, várias associações que, a nível nacional, exprimem pontos de vista diferentes sobre os problemas da justiça, refletindo, assim, de algum modo, as perspetivas políticas que coexistem nas suas sociedades.       

A opção dos magistrados portugueses teve, inicialmente, vantagens óbvias na consolidação das ideias e culturas democráticas no seio dos magistrados, que provinham de diferentes gerações e não tinham todos, por isso, o mesmo pensamento, nem a mesma atitude perante a democracia.

Tal modelo acabou, porém, por criar e desenvolver uma ideia de corpo fechado, que não só os isola hoje da discussão das opções político-culturais mais atuais, como, em geral, os leva a não compreender e olhar a política e os políticos com suspeição e, até, acrimónia.

A melhor forma de contrariar essa falaciosa ideia de corpo quase missionário e profissionalmente celibatário é, desde a formação inicial na escola da magistratura, desenvolver uma cultura de pluralismo jurídico e filosófico e, bem assim, uma ideia de discussão aberta e de necessária transparência nas opções de cada magistrado.

Os estatutos das magistraturas portuguesas são, a este propósito, razoavelmente equilibrados.

 Ao contrário do que acontece nas democracias mais recentes do centro e leste europeus, não interditam a ação política, apenas proíbem a participação militante dos magistrados em atos pública de natureza partidária.

Será, porém, no desvendamento e na transparência, e nunca na ocultação, que se garante um regime de verdade na assunção dos impedimentos processuais.

Como temos observado, as convicções recalcadas acabam por se manifestar de modo pouco curial, em não menos curiais momentos e sítios de expressão, inclusive naqueles dedicados unicamente ao exercício processual.

Magistraturas, democracia e política


Não parece aceitável a perspetiva de criar um cordão sanitário entre o exercício da magistratura e a atividade política e administrativa em geral.


De há muito, e nos últimos tempos com mais evidência, que alguns magistrados têm manifestado algum desconforto com o facto de outros deles desempenharem funções governativas e, depois, regressarem ao exercício da sua atividade nos tribunais ou no MP.

A questão da relação entre as magistraturas e o sistema político não tem sido fácil desde que, em 25 de Abril de 1974, Portugal abraçou a democracia.

Do tempo da ditadura, não nos ficaram, contudo, muitas notícias de igual desconforto manifestado por magistrados devido às relações promíscuas então existentes entre a política e a justiça.

Já assim não aconteceu, reconheça-se, com a advocacia que, em alguns momentos, corporizou, coletiva e individualmente, atitudes de coragem na denúncia do papel que o sistema judiciário existente à época cumpria.

O incómodo que alguns magistrados vêm assinalando poderá, até, ter alguma justificação.

Há, com efeito, no nosso regime democrático, demasiados casos – e alguns bem graves – de pouco respeito de alguns políticos para com as leis que nos governam.

Nunca, porém, aos magistrados de ambas as magistraturas que, em democracia, exerceram funções de ministro foram, alguma vez, assacadas condutas suspeitosas, antes e depois de tal desempenho.

Recordo aqui, a título de exemplo, alguns nomes prestigiados das magistraturas que, como outros, nunca foram alvo de qualquer tipo de insinuação, no que diz respeito aos atos que protagonizaram como governantes e, depois deles, à forma como, com total isenção, voltaram a exercer a sua profissão de magistrados: Pedro Macedo, Menéres Pimentel e Laborinho Lúcio.

O mesmo não se poderá dizer de uns tantos – poucos – magistrados, que nunca tendo exercido quaisquer funções de natureza político-administrativa, acabaram por, visivelmente, não honrar a função judicial que exerciam.

Uns por causa da política, outros do futebol, outros sabe-se lá porquê.

Assim, se se compreende a preocupação de certos magistrados – como de resto de todos os cidadãos – com a forma como, em demasiados casos, é exercida a atividade política, parece menos aceitável que esse cuidado possa, de alguma maneira, ser associado ao desempenho por magistrados de funções executivas.

O problema só pode, pois, residir na extrapolação popular – e populista – que, do mau desempenho de alguns políticos, se faz para a atividade política em geral.

Ora, um tal raciocínio é, além de injusto para a maioria dos políticos, perigoso para a própria ideia e prática institucional da democracia.

Não parece, por isso, aceitável que, com fundamento em tais impressões, se defenda a criação de um cordão sanitário entre o exercício da magistratura e a atividade política e administrativa em geral.

Os magistrados, todos os sabemos, não são anjos – têm sexo – e têm experiências pessoais e convicções próprias, que, inclusive, alguns deixam transparecer, a propósito ou a despropósito, nas peças processuais que subscrevem.

Por serem juízes ou procuradores, não adquirem, nem beneficiam, além disso, de nenhum certificado de santidade que possa ser necessariamente manchado pelo exercício de outras funções.

Convém, aliás, recordar que, em alguns países europeus – como no Reino Unido -, o recrutamento dos magistrados se faz entre candidatos que exerceram, primeiramente, na advocacia: aí a carreira de magistrado começa tarde e fundada, apenas, na experiência profissional antes adquirida na vida forense.

Noutros – como a Alemanha – os magistrados podem, inclusive, estar filiados em partidos e assumi-lo publicamente para que, como aconteceu durante o nazismo, não se refugiem numa falsa apoliticidade quando exercem, sem honra nem glória, as suas funções judiciais.

Os alemães de hoje preferem saber o que, realmente, pensam os magistrados que lidam com os seus processos: nesse conhecimento reside a transparência e também o esforço da isenção e da responsabilidade dos magistrados.

Foi, aliás, também por causa dessa falsa neutralidade, que, na Europa do pós-guerra e mais tarde, já nos anos setenta, se procurou desenvolver o associativismo judiciário pluralista como forma de integração e participação específica dos magistrados na discussão pública democrática. 

Em Portugal, depois de instaurada a democracia, os magistrados de ambas as magistraturas optaram por se organizar em associações únicas.

Neste aspeto, as magistraturas portuguesas consagraram, em comparação com outros países europeus, um modelo quase ímpar de associativismo.

Nestes últimos existem, em geral, várias associações que, a nível nacional, exprimem pontos de vista diferentes sobre os problemas da justiça, refletindo, assim, de algum modo, as perspetivas políticas que coexistem nas suas sociedades.       

A opção dos magistrados portugueses teve, inicialmente, vantagens óbvias na consolidação das ideias e culturas democráticas no seio dos magistrados, que provinham de diferentes gerações e não tinham todos, por isso, o mesmo pensamento, nem a mesma atitude perante a democracia.

Tal modelo acabou, porém, por criar e desenvolver uma ideia de corpo fechado, que não só os isola hoje da discussão das opções político-culturais mais atuais, como, em geral, os leva a não compreender e olhar a política e os políticos com suspeição e, até, acrimónia.

A melhor forma de contrariar essa falaciosa ideia de corpo quase missionário e profissionalmente celibatário é, desde a formação inicial na escola da magistratura, desenvolver uma cultura de pluralismo jurídico e filosófico e, bem assim, uma ideia de discussão aberta e de necessária transparência nas opções de cada magistrado.

Os estatutos das magistraturas portuguesas são, a este propósito, razoavelmente equilibrados.

 Ao contrário do que acontece nas democracias mais recentes do centro e leste europeus, não interditam a ação política, apenas proíbem a participação militante dos magistrados em atos pública de natureza partidária.

Será, porém, no desvendamento e na transparência, e nunca na ocultação, que se garante um regime de verdade na assunção dos impedimentos processuais.

Como temos observado, as convicções recalcadas acabam por se manifestar de modo pouco curial, em não menos curiais momentos e sítios de expressão, inclusive naqueles dedicados unicamente ao exercício processual.