Por força da decisão do Supremo Tribunal de Justiça recentemente conhecida deixa de ser possível o exercício da atividade de alojamento local em prédios. Em Portugal, são mais de 60.000 que podem ter que deixar de existir. Uma tragédia para quem apostou na atividade, uma perda irreparável para o país.
O alojamento local é uma realidade incontornável no panorama económico do país. A sua emergência legislativa respondeu a uma realidade pré-existente, não regulada e paralela, a qual frustrava a qualidade da oferta e não pagava impostos, bem como a uma evolução do perfil do turista, atento a novas fórmulas de satisfação das suas necessidades. Portugal soube responder e avançar. Fê-lo criando um regime inovador, mobilizador da iniciativa, plural no acesso e fiscalmente generoso, de molde a sinalizar potenciais interessados da oportunidade que se perfilava e do interesse público em que tal viesse a ter lugar. Deu resultado. São, hoje, mais de 100.000.
Os benefícios, múltiplos, não se esgotam , está bom de ver, nos grandes números do turismo. Se de uma visão mais larga nos socorrermos, avulta o papel primacial do alojamento local como força motriz da reabilitação de cascos urbanos envelhecidos, marcados pela desqualificação do território e olimpicamente ignorados pelos poderes públicos, os quais impotentes, batiam em retirada e entregavam-nos às mãos de fenómenos de exclusão social. O melhor que fizeram, sempre aquém, foram os anúncios faustosos a respeito da última geração de políticas de reabilitação urbana, tão pedintes de dinheiros público quão pobres e desoladores nos resultados.
Pelo contrário, hoje são espaços vivos, cujos contextos de competitividade foram recuperados, e, por isso, suscitam o interesse de todos, mesmo daqueles que por mote próprio migraram para as periferias, pois apenas anteviam nesses territórios em declínio projetos de vida menores. Projetos de vida sem escolas, sem espaços verdes, sem estacionamento, malhas urbanas inseguras e desqualificadas, património em decadência, incompatíveis no nosso imaginário com um certo perfil e estatuto que se criou, o qual resistia aos centros e os encarava como falhos de modernidade. Lisboa e Porto são bem o retrato desta metamorfose, a qual jamais teria ocorrido não fora o advento do alojamento local. Mas não só, por todo o país, em territórios deprimidos nasceram novas iniciativas, gente que lá encontrou um rumo e uma oportunidade lançando raízes onde elas estão a desaparecer. Foi uma extraordinária transformação.
Ora, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça – a qual vem na senda do preconceito que se foi adensando – denota um olhar desatento para as centenas de milhar de pessoas que avistaram uma oportunidade de criar o seu próprio emprego ou de complementar o seu rendimento mensal. Um olhar que sempre tem sido penalizador: sucessivos aumentos de impostos sobre o alojamento local, sucessivas ameaças de alterações legislativas que foram lançando o caos e a incerteza e agora isto. Tentativas atabalhoadas e politicamente irrefletidas de reproduzir toscos preconceitos a respeito da atividade. E esta ergue-se, hoje, segundo os seus detratores, como a principal responsável por fenómenos tão indesejáveis como a mutilação do património identitário de bairros tradicionais, o inexorável processo de gentrificação, a erradicação do mercado de arrendamento, a deterioração das relações de vizinhança, mesmo depois do aperfeiçoamento da legislação que deu maior poder ás autarquias, por exemplo no que se refere a áreas onde pode ter lugar, e regulou as relações entre condóminos, hoje com menor conflitualidade e com a possibilidade de cessação da atividade em caso de infrações.
Um total desrespeito por quem fez do alojamento local a sua atividade, tão típico do Estado português.
E o que vamos ter com esta decisão, afinal de contas ?
Em primeiro lugar, como chamou a atenção um dos juízes, uma possível avalanche de processos. A nada ser feito,
será afastado o alojamento local nos prédios cujas frações autónomas pertençam a mais do que um proprietário, os quais correspondem a mais de 80 por cento, este apenas subsistiria, para além de vivendas e moradias, nos prédios de um só proprietário, as mais das vezes grande proprietário. A procura manter-se-á, mas a oferta recuará.
Daí em diante, o itinerário é conhecido: o mercado concentra-se em menos e melhor remunerados – pois regista-se um aumento de preços –, e esses, ou outros com músculo financeiro, adquirem prédios na íntegra –assenhoreando-se do negócio e corroendo o mais notável aspeto da figura, a democratização de acesso e o benévolo efeito que produz na distribuição de proventos resultantes do turismo. Este é o efeito micro: a concentração da atividade nas mãos dos grandes grupos, dos grandes proprietários. O macro, consiste na redução do turismo, seja à força de não haver alternativas de alojamento que respondam a uma mutação desta envergadura –, seja pelo recuo de competitividade do destino em função da explosão dos preços.
E, por exemplo, o Algarve? O Algarve — esquecido e longínquo — fez-se à força do alojamento local. Ilegal, sim, nem enquadramento existia. Sem obrigações fiscais, de segurança, de higiene, ou outras? Sim. Não se elevavam sempre, e bem, as vozes que censuravam a economia paralela da região, cujos números de habitações no mercado do aluguer se estimam em mais de 200 mil camas? Vamos restituí-los — a franja que se registou — à clandestinidade após a cilada que o Estado lhes armou e que conduziu a que milhares deles se tenham legalizado e feito progredir a oferta da região? Infelizmente, até hoje, ninguém tinha descoberto o proprietário algarvio — espécie muito prolífica e longe da extinção (vide Quarteira, Armação de Pêra, Praia da Rocha) –, menos ainda os seus direitos.
Portugal vai perder milhões de visitantes com esta decisão. Agora e no futuro. Vai ter pior oferta: a clandestinidade é assim por natureza, sem regras. E vai ter menos oferta, nos locais onde a mesma se faz exclusivamente por via de plataformas, como é o caso dos destinos urbanos e dos geograficamente mais remotos.
Ora, tal vibrará uma machadada no turismo nacional e, por consequência, um rude golpe num dos mais robustos alicerces de crescimento da economia portuguesa, afetando todos os sectores conexos e com prejuízos para o emprego e para a coleta fiscal, mas premiando a informalidade e a desqualificação da oferta turística.
Basta alterar a lei. Sucede que quem tem o poder de alterar a lei, o Governo e o PS, já defendeu a tese que o SupremoTribunal de Justiça advoga.
Portugal fica a perder.