Em matéria de exteriorização do descontentamento social França e Portugal são países irmãos, ainda que com uma enorme diferença no volume empregue no lançar da grita. Lá como cá tudo se explica pela animalização do povo: la grogne. Em França rosna-se alto: manifestações, gilets jaunes, desaparição por via das urnas dos grandes partidos políticos tradicionais, eleição de presidentes sem partido político, revoluções (se a meteorologia ajudar…). Em Portugal rosna-se baixinho, quase silenciosamente se o chefe estiver por perto, rosna-se para dentro e, no silêncio da cabine de voto, a caneta desliza para o compromisso.
No entanto, quer no país de onde vinham as cegonhas, quer na Lusitânia, há problemas comuns, ainda que, como la grogne, com diferente intensidade na percepção (PIB per capita nominal expresso em USD em França em 2021 segundo o FMI: 44995, em Portugal: 25065…). Em ambos os países a classe média tornou-se um local infréquentable, a perda de poder de compra e o endividamento crescente dão-lhe uma abundância de novos pobres, o funcionalismo público mantém a garantia de emprego mas não consegue manter o rendimento real, os partidos tradicionais vão caindo (por cá: CDS eterna saudade, PCP nos cuidados intensivos, PSD perdido sem ser em combate, PS no poder sem saber porquê).
Para estes problemas as respostas são diferentes. A V República dotou-se, pela mão do fundador de Gaulle, de uma fábrica de altos funcionários, capaz de produzir Macrons que aguentam, distintos, um exame oral, dito debate presidencial, de quase três horas. Em Portugal vivemos durante o Salazarismo do Professorado coimbrão, substituído, com o 25 de Abril, pelos licenciados da FDL e assistimos agora ao triunfo do ISCTE, secção sociologia. A comparação favorece os enarcas.
Também o amor à Europa nos separa dos franceses. Com excepção de Manuel Monteiro, do PCP e, em muitos dias, do Bloco de Esquerda, Portugal tem uma posição nacional consistente perante a União Europeia: pobre e agradecido, com a mão estendida. Já em França esquerda e direita unem-se no desamor a Bruxelas e na reivindicação do primado do interesse nacional. Na versão do programa eleitoral de Le Pen filha está um referendo, a convocar rapidamente, para devolver o primado ao direito francês, concedendo uma preferência nacional em matéria de acesso ao emprego, à segurança social e à habitação. Independentemente da reduzida viabilidade constitucional do anunciado referendo, a sua concretização traduzir-se-ia num Frexit capaz de acabar com a União Europeia.
A derrota de Le Pen no próximo domingo não implica a garantia de maioria parlamentar macronista nas eleições legislativas de 12 e 19 de Junho. O sistema eleitoral maioritário a duas voltas continuará a servir de cordão sanitário ao Rassemblement National de Le Pen mas os vencidos pelo “faux choix” entre os dois candidatos presidenciais poderão dar origem a uma coligação de várias famílias no voto de protesto (os órfãos do PSF, os ex-PCF que já passaram pelo Front National de Le Pen pai, os desiludidos do macronismo, os ecologistas,…). Mélenchon anunciou esta semana a sua candidatura a Primeiro-Ministro com um programa político que, acrescentada a preocupação ambiental e eliminada a xenofobia, é, em grande medida, o programa da Srª Le Pen. Seria a quarta co-habitação durante a V República e por certo a mais difícil.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990