A democracia é de todos. Dentro dos limites previstos na Constituição, na qual nem todos se reveem, as expressões políticas e ideológicas não implicam inerências nem privilégios na relação de qualquer organização com o sistema democrático. À esquerda e à direita há quem se reclame seu defensor, com legitimidade que só pode ser atestada pelo cruzamento das suas proclamações com a realidade da sua atuação e os princípios constitucionais.
Sim, a democracia é linda. Dela emanam o Estado de Direito e as liberdades que tornam possível o debate político em campo aberto (até com aqueles que a prefeririam derrubar), como campanhas e eleições livres, liberdade de imprensa e de expressão, liberdade de organização e tudo mais que reconhecemos aos regimes democráticos.
Da distinção entre os Estados que reconhecem esses direitos, liberdades e garantias e aqueles que os reprimem ou sonegam nasce a fratura entre regimes democráticos e regimes autoritários, por muitas que sejam as suas nuances. Exemplo: Portugal é um Estado democrático, a Rússia não é.
Portanto, o que caracteriza a democracia é ser democrática, uma conclusão aparentemente evidente mas que os neoliberais nunca foram capazes de encaixar, o que acabou por gerar uma evolução semântica/conceptual que nos trouxe até à confusa distinção entre “democracias liberais” e “iliberais”, sem que se perceba bem se o que se está a qualificar é o regime político ou sistema económico; ou como se a democracia não fosse um qualificativo absoluto, bastando aos liberais que haja mercado, mesmo sem liberdade de imprensa ou de organização política, para que um Estado seja “democrático” embora “iliberal”.
Sem grandes argumentos, julgo ser claro que esta confusão se construiu a partir da apropriação neoliberal de uma retórica democrática para impor um determinado modelo económico: liberdade para os indivíduos (isolados) e liberdade para os mercados (omnipresentes). Esse modelo, que apostou na liberalização dos mercados e do capital e na privatização dos serviços públicos, transformou-se numa tragédia económica e social, não por combustão imediata, mas por falhar o essencial: a distribuição da riqueza.
A violência económica do fanatismo liberal espalhou pobreza e desigualdade, promoveu verdadeiros saques públicos e transformou-se muitas vezes em violência política e em autoritarismo. Em algumas partes do mundo, inspirou e continua a inspirar a política económica de ditaduras sangrentas ou de regimes muito pouco recomendáveis, tudo em nome de uma qualquer “liberdade” desqualificada.
A nossa democracia, pelo contrário, foi construída para servir outros objetivos: a descolonização, a liberdade política, os direitos humanos, económicos, sociais e culturais, a distribuição da riqueza e a socialização da propriedade. A nossa democracia fez-se sabendo o preço de quatro décadas de uma política económica feita pelas e para as elites; precedeu-se de greves e de lutas operárias históricas. A nossa democracia olhou para dentro e para fora e escolheu como caminho o socialismo, e assim acreditava quem saiu à rua para organizar os bairros, os campos e as fábricas.
Esse momento fundador da nossa democracia a que chamamos simplesmente “25 de abril” foi uma Revolução. Não reivindico nenhuma propriedade sobre as suas comemorações e muito menos a decisão sobre quem por ela desce a Avenida da Liberdade, mas reivindico a sua verdade histórica; reivindico-me dos valores e dos sonhos de quem a desceu a primeira vez em 1974. Sou das muitas e muitos que rejeitam o apagão ideológico que se esconde no chavão “o 25 de abril é de todos”.
Em jeito de conclusão, e como já devem ter adivinhado a resposta à pergunta inicial, não resisto a lembrar as palavras de Barata Moura: “Cravo Vermelho ao peito a muitos fica bem, sobretudo faz jeito a certos filhos da mãe”.
Deputada do Bloco de Esquerda