Tem suscitado polémica a eventual qualificação dos crimes de guerra na Ucrânia como podendo integrar o crime de genocídio. Inicialmente o Presidente americano Joe Biden recusou-se a qualificar a situação na Ucrânia como genocídio, preferindo antes usar a expressão crimes de guerra. No entanto, na passada terça-feira, depois da descoberta do massacre em Bucha, já foi muito claro, acusando a Rússia de estar a cometer um genocídio contra os ucranianos. Essa declaração teve o apoio do primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, que considerou igualmente correcta a qualificação como genocídio da actuação da Rússia na Ucrânia. De uma forma menos peremptória, o primeiro-ministro inglês Boris Johnson veio dizer que o cenário em Bucha não parece estar longe de um genocídio.
A qualificação da actuação da Rússia como genocídio teve, porém, a rejeição expressa do Presidente francês Emmanuel Macron, que considerou que o termo genocídio não se poderia aplicar à actuação da Rússia na Ucrânia, uma vez que os russos e os ucranianos seriam “pessoas fraternas” e que não ajudaria a Ucrânia entrar-se numa escalada verbal. Em resposta o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky convidou Macron a visitar pessoalmente a Ucrânia em ordem a averiguar o que lá se passava.
O crime de genocídio constitui o maior crime de guerra que pode ser praticado, encontrando-se desde logo previsto na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 9 de Dezembro de 1948. Nesta convenção, os Estados signatários reconhecem que “o genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do direito dos povos, que desde já se comprometem a prevenir e a punir” (art. 1º). A definição de genocídio encontra-se prevista no seu art. 2º que qualifica como tal “os actos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo”.
O crime de genocídio encontra-se igualmente previsto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, cujo art. 6º apresenta uma definição semelhante, considerando que o mesmo ocorre quando se verifica a prática de “qualquer um dos actos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida pensadas para provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”.
Essencial ao crime de genocídio é assim o elemento subjectivo da “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso, enquanto tal”. Cabe naturalmente ao procurador do Tribunal Penal Internacional apurar se o que está a passar na Ucrânia, e especialmente os relatos chocantes do massacre de Bucha, merece ou não essa qualificação. Não deixa, porém, de ser preocupante assistir-se à discussão desta questão em termos políticos, em lugar de a situação ser vista do ponto de vista criminal e do cumprimento das convenções internacionais relativas a este crime.
Entre 7 de Abril e 15 de Julho de 1994 decorreu o genocídio da população tutsi no Ruanda, onde foram mortas mais de 800.000 pessoas pelo Governo hutu. No entanto, enquanto os massacres prosseguiam, as Nações Unidas recusavam-se em sucessivas resoluções de 30 de Abril e 17 de Maio a qualificar a situação como genocídio. O Departamento de Estado norte-americano referiu expressamente em Maio que se recusava a usar esse termo para evitar as obrigações internacionais a ele respeitantes. A ONU, o máximo que fez foi a 8 de Junho admitir a existência de “actos genocidas”, só tendo mais tarde reconhecido a existência de genocídio, depois de se verificarem todas essas mortes.
Será que a comunidade internacional não aprendeu nada com o que se passou no Ruanda?