O exercício presidencial é uma reserva central ou complementar de esperança dos portugueses no funcionamento do sistema democrático. É, no plano político, o que o Tribunal Constitucional é no quadro jurídico-político por ser uma instância de recurso, que zela pelo normal funcionamento das instituições democráticas. Em Belém, já tivemos de quase tudo, para todos os gostos, até um Presidente que inspirou a criação de um partido, num impulso que terá sido das coisas menos próprias que marcam uma vida de decência e bom senso.
Depois do consulado de Cavaco Silva como Presidente, entre o revanchismo e o distanciamento à realidade, após Mário Soares e Jorge Sampaio, ainda tocados pela austeridade da Troika, os portugueses ansiaram por um rosto humano, próximo e sintonizado com as pessoas e os territórios. Marcelo Rebelo de Sousa percebeu o chamamento e, do alto dos créditos da presença televisiva a comentar a atualidade e a virtualidade, avançou destemido para a candidatura de rosto humano perante as divisões da esquerda. É como se a esquerda tivesse escolhido dividir-se nas presidenciais e a direita nas legislativas, numa espécie de partilha equitativa de disparates nas respetivas esferas de liberdade política.
Com uma maioria política cerzida na base da representação parlamentar do centro esquerda e os antecedentes de gelo presidencial de Cavaco Silva, Marcelo assumiu-se como um peixe na água, num exercício hiperativos, insistente e persistente de proximidade e proativismo, quantas vezes sem critério, mas com forte compromisso e cobertura da solução política de governo de turno. O entrosamento foi tal que gerou a singularidade tática de o maior partido político nacional não ter tido posição sobre as opções presidenciais, depois da enunciada paixão assolapada do primeiro-ministro pelo Presidente na linha de montagem da AutoEuropa, em modo de votos de reeleição. O controle de danos do embeiçamento foi o mim eleitoral do Partido Socialista com a concessão do que nunca deixou de estar concedido: a liberdade de voto.
Sob a banda larga do entendimento quase perfeito, muito além dos pontos de partida divergentes, entre otimismos irritantes e hiperatividades eufóricas, em bandas estreitas paralelas, Marcelo e Costa construíram o lastro nas ações e nas omissões para a obtenção dos resultados pretendidos: uma reeleição presidencial em modo de passeio e uma maioria absoluta com esmagamento dos parceiros e adversários tradicionais.
É tudo uma questão de expetativa e ainda assim, por vezes, ela nem se confirma. Marcelo contou com o contraste com a presidência de Cavaco Silva. Costa fintou, uma vez mais, as expetativas. Em 2014, a expetativa era ganhar, perdeu, mas mobilizou uma maioria parlamentar. Em 2021, a expetativa era, ainda assim, ganhar e teve maioria absoluta. Devido ao perfil da governação, à pandemia e às consequências da guerra, passámos de um tempo de sobrevivência dos principais protagonistas políticos para um novo enquadramento em que o desafio é o da sobrevivência generalizada da população. E a luta pela sobrevivência abre sempre a porta a disfunções e selvajarias.
Certamente que em Belém, ao longo da história de quase 48 anos, o inquilino escolhido pelo Povo acolheu, ouviu e recebeu muita gente, dentro da interpretação do exercício presidencial de cada protagonista. Há uma dimensão institucional, de reserva e preservação do cargo e da instituição e depois haverá uma margem de manobra.
Marcelo está meio perdido com a maioria absoluta, com a perda de embeiçamento de alguns, sobretudo em público. A perdição, sem amor, não é de agora, mas ganha crescente relevância no quadro da instituição de Belém como plataforma giratória de acolhimento de candidaturas.
Rangel quis ir contra Rio e foi a Belém.
Montenegro quis após Rio e foi a Belém.
Moreira da Silva quis ir ao pós Rio e foi a Belém.
Pode-se argumentar que o PSD é um partido estruturante da democracia portuguesa, razão para acolher protocandidatos no regaço do Palácio da Presidência da República, mas, imagine-se a desmultiplicação de idas a Belém de candidatos ou protocandidatos à Ordem dos Médicos, às Centrais Sindicais, às Associações Empresariais ou a todas as instituições com relevância para a sociedade portuguesa. Pode-se até compreender que Marcelo Presidente esteja a tentar compensar Marcelo militante pelo apoio dado ao governo desde 2016, mas há limites.
O Presidente da República mais protodeclarativo que já tivemos está perdido. Pode pretender mostrar ou partilhar alguma coisa através dos gestos, mas tem de ter mínimos de critério para não descambar em excesso. E, convenhamos que receber candidatos a líderes partidários não é coisa para fazer com alarido mediático, porque tem subjacente um afunilar da função presidencial por ausência de critério.
Querer ser tudo ao mesmo tempo nunca deu bons resultados. Até lá, em Belém, recebem-se candidatos, amigos e companheiros.
NOTAS FINAIS
O UMBIGO AUTÁRQUICO DE MOREIRA. A personagem só engana quem quer ser enganado e no PS houve muitos sintonizados com o chamamento. As autarquias como o país são muito desiguais, o que não deve deixar de mobilizar para a procura de equilíbrios, de soluções e de recursos para a responder à diversidade. Esse equilíbrio não é fácil na Associação Nacional de Municípios Portugueses como o não é em todas as instituições que acolhem diversidade, com compromisso. Ser parte de um todo é isso quando o umbigo não fala mais alto. Pergunte-se a gente de Bragança, Vila Real ou Viana do Castelo o que acham destas birras e do centralismo do Porto em relação ao Norte? Em relação ao protagonista, como se diz no Alentejo, quem o espalhou que os ajunte.
O TITANIC DESPORTIVO. A orquestra continua a tocar alegremente enquanto os casos, as situações e as dualidades de critério prosseguem. Já não basta o desporto e a atividade desportiva terem afundado devido às limitações da pandemia, há quem persista em não querer ver as inclinações dos campos, as arbitragens, os comportamentos inaceitáveis e os tempos certos para quem manda, além das cortinas de fumo geradas. Despertará o país quando for tarde ou quando, em comoção, se confrontar com o disparate grave ou a tragédia.
PERDA TOTAL. A espiral de perda assinala o avanço da idade. São referências de sempre e também gente que acaba por ser do nosso tempo. Já longe vai aquela noite dos anos 70, no Boa Esperança, em Portimão, em que resgatei um autógrafo de Eunice Muñoz, por admiração precoce. Perdurará.