Quando vivia na Rua Neves Ferreira, ali à Penha de França, ouvia o telefone tocar pela uma da tarde, geralmente às segundas-feiras, e já sabia que do lado de lá do fio ouvia a voz engrossada a cigarros do meu querido amigo Vítor Damas: “Como é? Vamos almoçar?” Íamos. Ao Manel Caçador. Às vezes com o Vítor Cândido, às vezes com o Carlos Gomes, que valia uma barrigada de conversa. Cabeça de peixe cozida, histórias para ouvir e guardar para sempre. Às segundas, em ABola era praticamente folga, aparecíamos na redação para consultar as agendas, se é que já não tínhamos reportagens marcadas pelo chefe. Havia tempo.
Vítor Manuel Afonso Damas de Oliveira: não sei se alguma vez vi guarda-redes mais elegante, magro, todo equipado de preto, como gostava, a gente chamava-lhe O Charuto por isso mesmo. Não era só elegante em campo, era elegante na vida, um cavalheiro, tranquilo, de palavras calmas, aquela voz inimitável. Falámos muitas vezes da eliminatória entre Sporting e Rangers, para os oitavos-de-final da Taça dos Vencedores de Taças de 1971-72, o mesmo Rangers que hoje joga em Braga, clube antigo e imenso que se deixou perder, como muitos outros, pela voragem das décadas e do dinheiro.
O primeiro jogo foi em Ibrox, um dos mais extraordinários e impressionantes estádios do mundo. Jogo renhido, taco a taco, dia 20 de Outubro de 1971, vitória escocesa por 3-2, golos de Colin Stein (2) e Willie Anderson para os da casa, de Chico Faria e de Wagner para os lisboetas.
Em Alvalade, no dia 3 de Novembro, o espectáculo foi ainda melhor. Em vez de cinco, marcaram-se sete golos. O Sporting, graças a Yazalde, Laranjeira e Pedro Gomes, repetiu o resultado de lá (dois de Colin Stein para o Rangers) e teve direito ao prolongamento da ordem que valeu mais um golo para cada lado – Willie Anderson e Fernando Peres. 4-3! Que ambiente! Que jogo! E que tranquibérnia, logo a seguir.
O árbitro holandês, Van Ravens, era um bocado para o ignorante em relação aos novos regulamentos estabelecidos pela UEFA no caso de empates na eliminatória. Já se tinha posto de parte a embirrenta decisão por moeda ao ar, valia, segundo achou o juiz, o recurso às grandes penalidades. E assim se fez, segundo as suas instruções. Damas, o meu querido amigo Vítor Damas, O Charuto, diminuiu a sua baliza ao mínimo tamanho possível. E, calmo e tranquilo, entre os postes, assumiu o seu posto de figura fundamental do jogo. Defendeu três penáltis. Spoting, 3 -Rangers, 0. O público, louco de alegria, atirou-se à festa do apuramento, invadiu o relvado e levou os seus em ombros. Mas, uma voz matreira, de grilo-falante, levantou a suspeita – “Olhem que não é assim. Não vale. Agora já contam os golos marcados fora. O árbitro não tinha nada que mandar marcar as grandes penalidades. 3-2 contra 3-4; façam as contas”.
Atrapalhado André Ramirez, espanhol, delgado da UEFA ao jogo, verdadeiro responsável por toda esta situação, por não se ter inteirado do que, de facto, diziam os novos regulamentos, veio no final do encontro emendar a mão como podia: “Parece-me que estou certo na minha decisão. Mas, se calhar, o melhor é indagar junto da UEFA. Na minha visão do assunto, o prolongamento foi jogado em campo entretanto neutralizado. E, por causa disso, os golos fora não fazem parte da equação”.
Pouco jeito para arbitrar de um holandês e ainda menos jeito de um espanhol para se limpar da porcaria em que se houvera metido. Os dirigentes do Sporting, dr. Pereira da Silva e Abraão Sorin viajaram de imediato para a Suíça, para numa reunião com a cúpula da UEFA, resolverem o assunto. Levavam com eles uma proposta: a da repetição do jogo de Lisboa.
Não tiveram sorte. Diretamente de Berna, a UEFA lançou um comunicado confirmando o apuramento do Rangers em detrimento do Sporting. “O Rangers ganhou. As grandes penalidades não eram necessárias perante as regras agora em vigor. Assim sendo, a UEFA considera o Rangers vencedor da eliminatória, garantindo lugar nos quartos-de-final da prova”.
O Charuto irritava-se: “Eu a defender penáltis uns atrás dos outros e a festejar essas defesas e, afinal, a fazer figura de tolo. Uma situação que, depois daquela alegria toda, em comunhão com os adeptos, se tornou ridícula. Mas que defendi três grandes penalidades, defendi!” Era assim o Damas: grande até nos momentos que não valiam.