Em novembro de 2021, ainda antes da guerra entre a Rússia e Ucrânia, foi publicado em Portugal, pela Antígona, um livro contendo dois ensaios – um de Hannah Arendt e outro de Giorgio Agamben – sobre a questão dos refugiados e os direitos humanos.
Mais do que nunca, o livro merece ser lido e refletido.
Arendt debruça-se sobretudo sobre a condição de refugiado, embora, pela data do ensaio, muita da sua abordagem se refira especialmente à posição que nela tiveram os judeus, antes e depois da 2ª Guerra.
Agamben vai um pouco mais longe e procura desenvolver e situar a questão num plano mais lato e que abarca já a condição de refugiado para além das circunstâncias específicas do problema dos judeus e da perseguição que os nazis lhes fizeram.
Da leitura dos dois textos resulta evidente, no entanto, e para além de todas as condições, a posição do homem – o homem só – despido, portanto, da sua origem e da sua circunstância de cidadão nacional e, logo, desprovido, também, por qualquer motivo superveniente, dos direitos que são inerentes à sua normal integração num estado-nação.
Desta evidência conseguida e aprofundadamente explorada por Arendt, quando refere as tentativas de inserção – enquanto cidadãos – de muitos judeus nos países de origem, ou nos países do seu refúgio sucessivo na Europa e na América, resulta, pela intervenção sucessiva de Agamben sobre o mesmo tema, a contraposição, nunca bem esclarecida, dos direitos do homem e do cidadão da Declaração de 1789.
Emerge, assim, evidente, por isso, a própria questão dos direitos do homem, daquele homem que teima, por vezes, em existir, ainda agora, fora da proteção jurídica do Estado em que se inscreveu – ou o inscreveram – por nascença ou naturalização.
Hoje, num mundo que alardeia a globalização da economia, mas em que renascem nacionalismos políticos e, portanto, novas barreiras/fronteiras, que definem novas cidadanias, a questão dos direitos do homem – do homem nu, como se lhe refere Agamben – merece ser olhada tal como ela de facto é: a situação do homem, mesmo que à margem da proteção do estado nação que lhe confere os direitos de cidadania.
É esse homem despido de direitos que se torna hoje, uma vez mais, paradigma da nossa crise atual e, por tal razão, motivo da reflexão que temos impreterivelmente de concretizar, antes de trilhar caminhos ainda mais perigosos do que os atuais.
A importância desse olhar torna-se ainda mais patente se atentarmos nos distintos tratamentos que os mesmos países europeus deram, e dão hoje ainda, aos refugiados de diferentes partes do mundo: refugiados que tiveram justamente de o ser, pelos mesmos motivos e pelas mesmas guerras, sem motivo real que não quiseram ou provocaram.
Para uns, barreiras de arame farpado ou morte por afogamento no mar.
Para outros, o pequeno, mas mesmo assim, conforto de um cobertor, de uma refeição quente, do apoio na procura de um teto e de um emprego na nossa terra, que queremos, e bem, que seja a deles também.
Hannah Arendt escreveu, no rescaldo da 2ª Guerra, sobre a especial condição do refugiado judeu, que, por simplesmente o ser, se distinguia da situação de qualquer outro refugiado com raízes numa nacionalidade desaparecida, ou numa cidadania perdida nas divisões políticas do fim dos impérios centrais e do pós-guerra.
Hoje, porém, a distinção que se estabelece entre os novos refugiados ultrapassa já a da singularidade da condição judaica – tivessem tido esses refugiados a nacionalidade que tiveram – para, numa escala mais elucidativa e espetacular, se projetar fundamentalmente na pura origem geográfica da sua proveniência.
O despojamento prático dos direitos de cidadania associado a uma nacionalidade qualquer de parte desta nova geração de refugiados deixou, assim, de ter já a ver com uma pertença indefinível – mesmo quando assumida, como é a específica da condição de judeu – para passar a refletir-se, de uma maneira muito mais crua e mais visível, na origem real, concreta e identificável de cada um dos refugiados.
Daí – e porque no mundo se confrontam, hoje, contraditórias tensões globalizadoras e secessionistas – que possa acontecer, neste mesmo momento, que alguns queiram escolher e acolher melhor os «nossos» refugiados do que os outros: aqueles a quem, afinal, não consideram ainda dignos de adquirir uma cidadania nossa como a sua.
Ou, dito de outro modo, haverá refugiados que queremos, por, na verdade, os considerarmos nossos iguais e dignos de terem já, ou virem a ter em breve, uma cidadania como a nossa, e outros a quem, por ora, e num futuro próximo, recusamos essa mesma cidadania, isto é: os mesmos direitos.
A uns acolhemos diretamente – e ainda bem que o fazemos –, a outros pagamos a terceiros para que os guardem longe da vista em campos que relembram outras realidades e outros tempos.
Ao atuar deste modo, definimos, também nós, as novas fronteiras e a nova ordem do mundo.
De fora de todas estas diferenças, parecem ficar afinal os direitos do homem: daquele homem que antes de ser cidadão, e de ter tido, ou não, alguma vez, uma qualquer cidadania, existe, mesmo assim, despido de qualquer proteção jurídica digna desse nome.
São louváveis – dignos de todo o nosso apreço – todos os esforços de quantos se dedicam por humanidade a acolher e apoiar os refugiados da nova guerra.
Não nos esqueçamos, porém, de toda a outra humanidade que, também devido a guerras que não escolheu ter, não recebe, nem espera vir a receber, em breve, tratamento idêntico.
Esses ficarão, porventura para sempre, no outro lado da fronteira da nova ordem mundial até que uma nova e mais devastadora guerra a altere uma vez mais.