Perante a situação de verdadeiro colapso a que presentemente se assiste na Justiça, esperar-se-ia que o XXIII Governo prestasse especial atenção a este sector, indicando no seu programa medidas concretas para inverter a situação. Não é, porém, isso o que sucede, bastando ver que, das 182 páginas deste programa apenas cinco são dedicadas à Justiça.
Mas, para além disso, o programa do novo Governo não apresenta quaisquer soluções para os gravíssimos problemas existentes e insiste em medidas totalmente desadequadas, constituindo em grande parte uma reprodução do programa do XXII Governo.
Assim, o título do capítulo do programa do XXIII Governo para a Justiça é “uma justiça eficiente, ao serviço dos direitos e do desenvolvimento económico-social” (p. 66), exactamente o mesmo título desse capítulo no programa do XXII Governo (p. 51). Em seguida, o Governo proclama que “tornar a Justiça mais próxima, mais eficiente e mais célere, aumentar a transparência e a prestação de contas do serviço público de Justiça e contribuir para melhorar a qualidade da Justiça, criando as condições legislativas, materiais e técnicas para o efeito, são objetivos essenciais para o interesse do Estado e dos cidadãos” (p. 66), exactamente o que já tinha proclamado no programa do Governo anterior (p. 51).
O Governo reconhece hoje em 2022 que “a morosidade e a complexidade processuais e do modelo de funcionamento, bem como o atual sistema de custas processuais são um obstáculo à plena realização dos direitos e também um entrave ao desenvolvimento económico” (pág. 66), exactamente o mesmo que já tinha reconhecido em 2019 (p. 52). E o Governo apenas se compromete a “reduzir as situações em que as custas processuais importam valores excessivos, nos casos em que não exista alternativa à composição de um litígio” (pág. 67), exactamente o mesmo que propôs em 2019 (p. 52).
Daqui resulta que, conforme ocorreu nos últimos três anos, manifestamente não haverá qualquer redução das custas processuais, uma vez que os meios alternativos de resolução de litígios estão quase sempre disponíveis. O Governo pretende assim continuar a manter os nossos tribunais inacessíveis aos cidadãos, remetendo-os para a justiça privada.
Especialmente grave neste âmbito é a proposta do Governo, que pretende “garantir que, nos processos onde estejam em causa questões da vida dos cidadãos (ex. regulação do poder paternal, heranças), algumas de especial urgência, o sistema de justiça assegura respostas muito rápidas, a custos reduzidos, nomeadamente através dos julgados de paz e sistemas de resolução alternativa de litígios” (p. 67). O Governo também já tinha efectuado esta proposta em 2019 (p. 52).
Verifica-se assim que o Governo, perante situações que os cidadãos consideram das mais importantes da sua vida, como a sua relação com os seus filhos, ou a herança dos seus familiares, não lhes assegura o acesso aos tribunais, pretendendo que tratem destes assuntos em julgados de paz ou em tribunais arbitrais. É manifesto que litígios com esta dimensão humana têm que ser tratados nos tribunais do Estado, até para se assegurar a paz social no nosso país.
Mas, como não se bastasse esta redução das competências dos tribunais, o Governo pretende ainda diminuir as intervenções processuais e até reduzir os meios de prova em juízo. É assim que se propõe “desenvolver novos mecanismos de simplificação e agilização processual nos vários tipos de processo, designadamente através da revisão das intervenções processuais (…)” (p. 67), exactamente o mesmo que já tinha proposto em 2019 (p. 52). E propõe-se também “fomentar a introdução nos processos cíveis de soluções de constatação de factos por peritos ou técnicos, por forma a evitar o recurso excessivo à prova testemunhal ou a peritagens” (p. 68), também o mesmo que já tinha proposto em 2019 (p. 53). Os cidadãos verão assim profundamente restringido o seu direito de acesso aos tribunais, ao contrário do que determina o art. 20º da Constituição.
Esperar-se-ia que a nova equipa ministerial tivesse apresentado um programa novo para o sector da Justiça, que permitisse atribuir um novo começo a um sector com tantos problemas. A apresentação de um programa do Governo que é uma simples reprodução do programa do Governo anterior é, por isso, um mau sinal. Esperemos, porém, que a situação possa melhorar no futuro.