Há quem tente organizar as guerras da sucessão como quem prepara apostas desportivas, com base nos rankings das épocas anteriores. O método falha logo na escolha dos pré-candidatos a sucessor. A história da literatura testemunha estas injustiças: os três mosqueteiros eram afinal quatro e os cinco de Enid Blyton só chegaram ao número primo com o abusivo recurso a um cão. O XXIII constitucional anuncia quatro candidatos à sucessão de António Costa sem respeitar a regra base do atravessamento ferroviário: um (pré)candidato pode esconder outro.
Seria injusto reduzir a orgânica do XXIII ao estudo das capacidades acrobáticas dos quatro delfins anunciados, à identificação das denominações de origem dos governantes (de Lisboa ou da província, formados pela Escola de Lisboa ou pela Escola de Coimbra, de ferro Costa ou com marca de delfim/delfina). A propalada diminuição do número de Ministros não comove. O XXII era um Governo de coligação: tinha 19 (de-za-no-ve!) ministros, um para cada 500 000 portugueses, um para cada 250 000 votantes, um para cada 100 000 eleitores que votaram PS. Com o advento da maioria absoluta caíram dois Ministérios que nunca o foram mas a redução para 17 ministros não impressiona.
Portugal é um país profundamente conservador e as orgânicas governamentais não fogem a esta natureza. A mudança de ciclo político dá a cada novo primeiro-ministro o poder de preencher com outros nomes os rectângulos vazios da anterior orgânica, herdando, preguiçosamente agradecido, o modelo organizacional do antecessor. Não obstante esta inevitabilidade histórica, o XXIII, o terceiro da série Costa, tem um elemento de originalidade. A análise comparada das orgânicas governamentais detecta três possibilidades para a gestão das relações com a União Europeia: por via do Ministério dos Negócios Estrangeiros, por via de um Ministério dos Assuntos Europeus ou por via de uma unidade orgânica na directa dependência do chefe do Governo (caso do Reino Unido antes do Brexit) ou, nos sistemas de governo presidencialistas, do chefe de Estado (a solução francesa). Em Portugal, país ferozmente corporativista, prevaleceu a solução tradicional, centrada no MNE. O modelo “não ministerial”, agora por via de um Secretário de Estado dos Assuntos Europeus acoplado ao PM, tem a enorme vantagem de promover a um nível político elevado as arbitragens negociais entre ministérios e de conferir maior peso político à posição nacional. Sempre defendi esta modalidade (e, “já agora”, levando até ao fim as suas consequências orgânicas, desde logo ao nível da representação portuguesa junto da UE) pelo que espero que a sua tardia consagração tenha resultado da aprendizagem fornecida pela recente Presidência Portuguesa do Conselho da UE e não de uma pré-candidatura à temporada de 2024 das chaises musicales na UE.
Regressando ao delfinário: a competição entre delfinas e delfins, desde que regrada, pode ser útil à produtividade do XXIII. Mas se aquilo que deveria ser um Sideshow passar a ser o espectáculo único, corremos o risco, enquanto espectadores pagantes, de contar os minutos para o fim do espectáculo, ansiando pela devolução à liberdade dos delfins e das delfinas. Convoquemos o elemento histórico: sem admitir o delfinato, Cavaco estimulava a concorrência entre ministros, o que correu menos mal até o momento em que, ainda antes da quebra do tabu sucessório e para glória semanal de O Independente, os delfins se dedicaram ao canibalismo.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990