As armadilhas do teletrabalho – II


As pessoas precisam de sair, de interagir, de quebrar o isolamento e a falta de contacto e de comunicação.


Escrevi eu há duas semanas, na primeira parte deste texto, que – embora sem desconhecer ou apoucar as várias vantagens e alguns benefícios – o teletrabalho, especialmente na onda de encantamento e na moda que agora o rodeia, tem desvantagens e perigos. Aludi naquela primeira parte a uma dimensão mais pessoal, e anunciei que entendia que seriam também relevantes as dimensões profissional, social e política. É o que escreverei agora, sinteticamente, começando pela primeira – e para além de temas já abordados a respeito da vertente pessoal que também são profissionais (essencialmente o favorecimento da “perseguição e da contaminação pelo trabalho”).

O teletrabalho pode ser, nesta vertente, empobrecedor. Por um lado, porque a interação cara a cara é muito importante, o estar-com é fundamental, o contacto, o ter os outros ao alcance dos sentidos e não apenas caras num ecrã, e até as conversas de corredor não são de menosprezar. Por outro lado, a formação e a evolução profissionais têm uma importantíssima componente on the job, e isso também se perde em larga medida com o teletrabalho. É, isso sim (e não é despiciendo), um instrumento relevante para as empresas conterem custos, mas não favorece nem a aprendizagem, nem o conhecimento, nem uma coisa hoje tão cara e popular (aliás, em excesso e causando distorções arrepiantes, por exemplo a categorização de tudo, o cancelamento cultural, etc.) que é a empatia. Ou seja, profissionalmente falando, quando escavamos um bocadinho mais no tema começamos a ver melhor o seu dark side. 

E nas perspetivas social e política a coisa também não é isenta de vários e relevantes problemas. Para começar, as pessoas precisam de sair, de interagir, de quebrar o isolamento e a falta de contacto e de comunicação – que aliás já ganham corpo e caminho, mesmo sem teletrabalho, numa sociedade fortemente digital, onde tendem a aumentar o solipsismo, o afastamento e a encenação. E trabalhar em casa e a partir de casa não contribui nada para essa necessidade de saída e de interação. Depois, se é verdade que a curto ou médio prazo facilita a vida, por exemplo, de muita gente atirada para as periferias, a longo prazo faz com que – uma vez instalado um cenário estável de teletrabalho para muitas pessoas – progressivamente possam desaparecer das preocupações dominantes e, assim, também das políticas públicas temas como a gentrificação das cidades, as redes de mobilidade, a especulação imobiliária, et cetera. Não porque deixem de ser problemas em si mesmos, mas porque serão menos sentidos quando a casa se for tornando para muitos o lugar natural ou predominante de trabalho. Como diz o ditado, longe da vista, longe do coração.

Finalmente – e para ser aqui sintético e não excessivamente pessimista -, o teletrabalho é um fator indutor de desigualdade, e em dois planos. Por um lado, porque as condições habitacionais, tecnológicas e outras das pessoas são muito diferentes, mesmo daquelas que fazem as mesmas coisas e até nos mesmos lugares, pelo que tirá-las do local de trabalho e colocá-las em casa, nas suas próprias realidade e condição, significa tratar de modo desigual o que deveria ser igual. Por outro lado, as possibilidades de teletrabalho não são para todos, e serão tendencialmente maiores, pela natureza das coisas, para algumas profissões ou funções tidas como ou ditas “privilegiadas”, o que acarreta, do mesmo passo, desigualdade real e simbólica – coisas, uma e outra, que a meu ver também podem não contribuir para que seja assim tão admirável este mundo novo. 

 

As armadilhas do teletrabalho – II


As pessoas precisam de sair, de interagir, de quebrar o isolamento e a falta de contacto e de comunicação.


Escrevi eu há duas semanas, na primeira parte deste texto, que – embora sem desconhecer ou apoucar as várias vantagens e alguns benefícios – o teletrabalho, especialmente na onda de encantamento e na moda que agora o rodeia, tem desvantagens e perigos. Aludi naquela primeira parte a uma dimensão mais pessoal, e anunciei que entendia que seriam também relevantes as dimensões profissional, social e política. É o que escreverei agora, sinteticamente, começando pela primeira – e para além de temas já abordados a respeito da vertente pessoal que também são profissionais (essencialmente o favorecimento da “perseguição e da contaminação pelo trabalho”).

O teletrabalho pode ser, nesta vertente, empobrecedor. Por um lado, porque a interação cara a cara é muito importante, o estar-com é fundamental, o contacto, o ter os outros ao alcance dos sentidos e não apenas caras num ecrã, e até as conversas de corredor não são de menosprezar. Por outro lado, a formação e a evolução profissionais têm uma importantíssima componente on the job, e isso também se perde em larga medida com o teletrabalho. É, isso sim (e não é despiciendo), um instrumento relevante para as empresas conterem custos, mas não favorece nem a aprendizagem, nem o conhecimento, nem uma coisa hoje tão cara e popular (aliás, em excesso e causando distorções arrepiantes, por exemplo a categorização de tudo, o cancelamento cultural, etc.) que é a empatia. Ou seja, profissionalmente falando, quando escavamos um bocadinho mais no tema começamos a ver melhor o seu dark side. 

E nas perspetivas social e política a coisa também não é isenta de vários e relevantes problemas. Para começar, as pessoas precisam de sair, de interagir, de quebrar o isolamento e a falta de contacto e de comunicação – que aliás já ganham corpo e caminho, mesmo sem teletrabalho, numa sociedade fortemente digital, onde tendem a aumentar o solipsismo, o afastamento e a encenação. E trabalhar em casa e a partir de casa não contribui nada para essa necessidade de saída e de interação. Depois, se é verdade que a curto ou médio prazo facilita a vida, por exemplo, de muita gente atirada para as periferias, a longo prazo faz com que – uma vez instalado um cenário estável de teletrabalho para muitas pessoas – progressivamente possam desaparecer das preocupações dominantes e, assim, também das políticas públicas temas como a gentrificação das cidades, as redes de mobilidade, a especulação imobiliária, et cetera. Não porque deixem de ser problemas em si mesmos, mas porque serão menos sentidos quando a casa se for tornando para muitos o lugar natural ou predominante de trabalho. Como diz o ditado, longe da vista, longe do coração.

Finalmente – e para ser aqui sintético e não excessivamente pessimista -, o teletrabalho é um fator indutor de desigualdade, e em dois planos. Por um lado, porque as condições habitacionais, tecnológicas e outras das pessoas são muito diferentes, mesmo daquelas que fazem as mesmas coisas e até nos mesmos lugares, pelo que tirá-las do local de trabalho e colocá-las em casa, nas suas próprias realidade e condição, significa tratar de modo desigual o que deveria ser igual. Por outro lado, as possibilidades de teletrabalho não são para todos, e serão tendencialmente maiores, pela natureza das coisas, para algumas profissões ou funções tidas como ou ditas “privilegiadas”, o que acarreta, do mesmo passo, desigualdade real e simbólica – coisas, uma e outra, que a meu ver também podem não contribuir para que seja assim tão admirável este mundo novo.