A lei dos tribunais: nacionais e internacionais


O que Lord Jonathan Sumption pretende questionar é o que ele entende ser o uso, e sobretudo o abuso, de os tribunais suprirem, no seio de sociedades democrático-liberais, a mais legítima forma de legislar em tais sistemas políticos: a aprovação de leis nos parlamentos pelos votos dos representantes eleitos do povo.


Quando, na semana passada, vos falei, aqui, do livro de Lord Jonathan Sumption, Trials of State, fi-lo num sentido muito preciso e relativo às reações judiciárias aos eventos relacionados com as guerras.

A obra tem, porém, muitos outros motivos de reflexão, mesmo, ou sobretudo, quando não podemos acompanhar completamente as opiniões do autor.

Uma caraterística altamente positiva, pelo menos para os juristas de génese europeia continental, é a da simplicidade do discurso: nisso, ultrapassa-nos claramente.

Com isto não quero insinuar, porém, o simplismo dos seus argumentos ou o primarismo da sua exposição escrita: o livro não peca de tal defeito.

Pelo contrário, ele atinge, até, elevada qualidade e coerência argumentativa.

O que sobreleva – e espanta  a um jurista continental – é precisamente a clareza e a sobriedade da exposição, mesmo quando esta serve uma reflexão altamente elaborada e complexa.

No fundo, mesmo que abordando diversas facetas e planos da questão que trata, o que Lord Jonathan Sumption pretende questionar é o que ele entende ser o uso, e sobretudo o abuso, de os tribunais suprirem, no seio de sociedades democrático-liberais, a mais legítima forma de legislar em tais sistemas políticos: a aprovação de leis nos parlamentos pelos votos dos representantes eleitos do povo.

Para tanto – mesmo reconhecendo implícitas vantagens na subordinação das leis comuns aos princípios constitucionais essenciais – o autor critica a prática, que considera abusiva, que de tais poderes judiciais, hoje, é feita em muitas e desnecessárias situações.

Não é tanto a necessidade do controlo constitucional das normas legais comuns que Jonathan Sumption questiona, antes a reiterada criação de direito novo, feita pelos tribunais, a partir dos princípios que os juízes fazem extrair, com alguma criatividade e muita idealização, das declarações universais de direitos, dos tratados internacionais e das constituições.

É sobretudo neste plano, tanto no que ele se traduz na criação de direitos positivos novos, que, só muito implicitamente, o autor diz conseguirem vislumbrar-se e viverem implícitos nos princípios constitucionais invocados, como no da rejeição politicamente mal-assumida de diferenças e desvalores que o legislador ordinário consagrou nas leis que aprovou.

Em síntese, o autor questiona a perfeita legitimidade democrática do papel legislativo dos tribunais quando, exagerando, eles se substituem – muitas vezes com a aquiescência destes – aos eleitos do povo.

Vale a pena, já só por isso, ler o livro, pois, na realidade, o autor consegue, mesmo sem nos demover cabalmente, abalar muitas das nossas convicções mais fundas.

Na verdade, todos nos fomos apercebendo já do verdadeiro, mas muitas vezes oportuno, jogo do empurra que se estabelece, frequentemente, entre os órgãos políticos com poderes legislativos e os tribunais superiores; mormente – no nosso caso – o Tribunal Constitucional. 

Se esse devolver de responsabilidades se desenrola, todavia, num nível próximo e no seio do mesmo sistema constitucional nacional, ele é, de alguma maneira, e ainda assim, compreensível e controlável pelos cidadãos do país.

A sua legitimidade e consequente aceitação resultam da compreensão simples e mais óbvia, por parte dos cidadãos, do sistema político-constitucional que os governa.

A legitimidade de tal tipo de intervenção legislativa pretoriana (legislar através de decisões judiciais) fica, porém, mais obscura, e degrada-se frequentemente, quando ela resulta da intervenção de tribunais internacionais ou europeus, cuja ação e legitimidade é, por natureza, menos acessível ao entendimento dos cidadãos dos países visados por ela.

É verdade que, em muitas situações, não fosse a intervenção de tais tribunais extranacionais, as características estatutárias de independência dos próprios juízes de alguns dos países que aderiram a tais jurisdições extranacionais ficariam definitivamente desfiguradas e, com elas, a qualidade do estado de direito do seu país.

O problema é que essa forma pretoriana de legislar levada a cabo, casuisticamente, pelos tribunais internacionais nem sempre toma em consideração o conjunto e os contextos históricos dos modelos constitucionais e organizativos nacionais de todos os países que aceitam a sua jurisdição e que, não sendo visados pela decisão concreta, são, também, por ela, direta ou indiretamente, afetados.

A decisão de um caso relativo a um país concreto passa, por causa dos princípios gerais que estatui, a dever, então, ser tomada em conta em outros países, mesmo que a harmonia e coerência interna do seu sistema – que, de outra maneira, garante os mesmos princípios e direitos – fique, deste modo, devastada. 

Isso deixa, escandalosamente, em aberto, por vezes, situações de países que, integrando e submetendo-se, em princípio, a essa mesma jurisdição extranacional, não pretendem inspirar-se, depois, de nenhuma forma, na orientação sucessivamente traçada por tais tribunais.

Sendo os seus sistemas idênticos aos dos visados pelas suas decisões, mas não necessariamente iguais, defendem tais países que, por outras vias, conseguem alcançar o mesmo nível de proteção de direitos que as decisões dos tribunais extranacionais visam fazer cumprir.

Esta atitude – aceite, com grande complacência, no que se refere aos países mais influentes – acaba, assim, por permitir situações discrepantes entre os países que aceitaram a jurisdição de tais tribunais.

Acabam, assim, modificados os sistemas legais de certos países que integram uma determinada comunidade internacional ou europeia, quando outros, que também a ela pertencem, nada fazem para adequar os seus modelos àquelas determinações forenses: quem pode, pode, realmente!

O resultado de tudo isto é, desde logo, a desarticulação de sistemas que, por via negocial e política, tendiam, paulatina, mas efetivamente, à harmonização e coerência das soluções jurídicas que, de facto, importava adotar.

Ler e reler, portanto, Trials of State de Lord Jonathan Sumption, se não resolve os problemas que se suscitam hoje com mais evidência ante os nossos já desencantados espíritos, pode, pelo menos, fazer deflagrar em alguns deles a vontade de retornar a uma busca da coerência política perdida.

É, também, por causa da cada vez maior visibilidade dessa incoerência que a legitimidade e objetividade das decisões de muitos tribunais internacionais ou europeus – a legitimidade do conjunto das nossas democracias e estados de direito –  são hoje postas em causa.      

 

A lei dos tribunais: nacionais e internacionais


O que Lord Jonathan Sumption pretende questionar é o que ele entende ser o uso, e sobretudo o abuso, de os tribunais suprirem, no seio de sociedades democrático-liberais, a mais legítima forma de legislar em tais sistemas políticos: a aprovação de leis nos parlamentos pelos votos dos representantes eleitos do povo.


Quando, na semana passada, vos falei, aqui, do livro de Lord Jonathan Sumption, Trials of State, fi-lo num sentido muito preciso e relativo às reações judiciárias aos eventos relacionados com as guerras.

A obra tem, porém, muitos outros motivos de reflexão, mesmo, ou sobretudo, quando não podemos acompanhar completamente as opiniões do autor.

Uma caraterística altamente positiva, pelo menos para os juristas de génese europeia continental, é a da simplicidade do discurso: nisso, ultrapassa-nos claramente.

Com isto não quero insinuar, porém, o simplismo dos seus argumentos ou o primarismo da sua exposição escrita: o livro não peca de tal defeito.

Pelo contrário, ele atinge, até, elevada qualidade e coerência argumentativa.

O que sobreleva – e espanta  a um jurista continental – é precisamente a clareza e a sobriedade da exposição, mesmo quando esta serve uma reflexão altamente elaborada e complexa.

No fundo, mesmo que abordando diversas facetas e planos da questão que trata, o que Lord Jonathan Sumption pretende questionar é o que ele entende ser o uso, e sobretudo o abuso, de os tribunais suprirem, no seio de sociedades democrático-liberais, a mais legítima forma de legislar em tais sistemas políticos: a aprovação de leis nos parlamentos pelos votos dos representantes eleitos do povo.

Para tanto – mesmo reconhecendo implícitas vantagens na subordinação das leis comuns aos princípios constitucionais essenciais – o autor critica a prática, que considera abusiva, que de tais poderes judiciais, hoje, é feita em muitas e desnecessárias situações.

Não é tanto a necessidade do controlo constitucional das normas legais comuns que Jonathan Sumption questiona, antes a reiterada criação de direito novo, feita pelos tribunais, a partir dos princípios que os juízes fazem extrair, com alguma criatividade e muita idealização, das declarações universais de direitos, dos tratados internacionais e das constituições.

É sobretudo neste plano, tanto no que ele se traduz na criação de direitos positivos novos, que, só muito implicitamente, o autor diz conseguirem vislumbrar-se e viverem implícitos nos princípios constitucionais invocados, como no da rejeição politicamente mal-assumida de diferenças e desvalores que o legislador ordinário consagrou nas leis que aprovou.

Em síntese, o autor questiona a perfeita legitimidade democrática do papel legislativo dos tribunais quando, exagerando, eles se substituem – muitas vezes com a aquiescência destes – aos eleitos do povo.

Vale a pena, já só por isso, ler o livro, pois, na realidade, o autor consegue, mesmo sem nos demover cabalmente, abalar muitas das nossas convicções mais fundas.

Na verdade, todos nos fomos apercebendo já do verdadeiro, mas muitas vezes oportuno, jogo do empurra que se estabelece, frequentemente, entre os órgãos políticos com poderes legislativos e os tribunais superiores; mormente – no nosso caso – o Tribunal Constitucional. 

Se esse devolver de responsabilidades se desenrola, todavia, num nível próximo e no seio do mesmo sistema constitucional nacional, ele é, de alguma maneira, e ainda assim, compreensível e controlável pelos cidadãos do país.

A sua legitimidade e consequente aceitação resultam da compreensão simples e mais óbvia, por parte dos cidadãos, do sistema político-constitucional que os governa.

A legitimidade de tal tipo de intervenção legislativa pretoriana (legislar através de decisões judiciais) fica, porém, mais obscura, e degrada-se frequentemente, quando ela resulta da intervenção de tribunais internacionais ou europeus, cuja ação e legitimidade é, por natureza, menos acessível ao entendimento dos cidadãos dos países visados por ela.

É verdade que, em muitas situações, não fosse a intervenção de tais tribunais extranacionais, as características estatutárias de independência dos próprios juízes de alguns dos países que aderiram a tais jurisdições extranacionais ficariam definitivamente desfiguradas e, com elas, a qualidade do estado de direito do seu país.

O problema é que essa forma pretoriana de legislar levada a cabo, casuisticamente, pelos tribunais internacionais nem sempre toma em consideração o conjunto e os contextos históricos dos modelos constitucionais e organizativos nacionais de todos os países que aceitam a sua jurisdição e que, não sendo visados pela decisão concreta, são, também, por ela, direta ou indiretamente, afetados.

A decisão de um caso relativo a um país concreto passa, por causa dos princípios gerais que estatui, a dever, então, ser tomada em conta em outros países, mesmo que a harmonia e coerência interna do seu sistema – que, de outra maneira, garante os mesmos princípios e direitos – fique, deste modo, devastada. 

Isso deixa, escandalosamente, em aberto, por vezes, situações de países que, integrando e submetendo-se, em princípio, a essa mesma jurisdição extranacional, não pretendem inspirar-se, depois, de nenhuma forma, na orientação sucessivamente traçada por tais tribunais.

Sendo os seus sistemas idênticos aos dos visados pelas suas decisões, mas não necessariamente iguais, defendem tais países que, por outras vias, conseguem alcançar o mesmo nível de proteção de direitos que as decisões dos tribunais extranacionais visam fazer cumprir.

Esta atitude – aceite, com grande complacência, no que se refere aos países mais influentes – acaba, assim, por permitir situações discrepantes entre os países que aceitaram a jurisdição de tais tribunais.

Acabam, assim, modificados os sistemas legais de certos países que integram uma determinada comunidade internacional ou europeia, quando outros, que também a ela pertencem, nada fazem para adequar os seus modelos àquelas determinações forenses: quem pode, pode, realmente!

O resultado de tudo isto é, desde logo, a desarticulação de sistemas que, por via negocial e política, tendiam, paulatina, mas efetivamente, à harmonização e coerência das soluções jurídicas que, de facto, importava adotar.

Ler e reler, portanto, Trials of State de Lord Jonathan Sumption, se não resolve os problemas que se suscitam hoje com mais evidência ante os nossos já desencantados espíritos, pode, pelo menos, fazer deflagrar em alguns deles a vontade de retornar a uma busca da coerência política perdida.

É, também, por causa da cada vez maior visibilidade dessa incoerência que a legitimidade e objetividade das decisões de muitos tribunais internacionais ou europeus – a legitimidade do conjunto das nossas democracias e estados de direito –  são hoje postas em causa.