Em vésperas de virarmos a página da inusitada crise política criada pelo chumbo do Orçamento de Estado, no meio de diversas crises, de valores, económica, social e de perspetivas, finalmente há novo Governo.
Com mais tempo em democracia do que o vivo em ditadura, um Governo dotado de maioria absoluta no Parlamento, parece ser mesmo a única nota de previsibilidade que temos no horizonte, além dos impulsos individuais e comunitários de resiliência e sobrevivência. A estabilidade política contrasta com a imprevisibilidade das circunstâncias e com o acumular de problemas, tarefas e desafios a precisarem de respostas ou de vontade transformadora. No cesto dos problemas por resolver, qual roupa suja acumulada, alguns no limiar do sujo entranhado, estão questões estruturais, os problemas resultantes da pandemia, os novos problemas que emergem da guerra na Ucrânia e a incontornável capacidade de conseguir executar as propostas políticas apresentadas e os recursos financeiros existentes, no PRR e no Portugal 2030.
Uma maioria absoluta permitiria ter mais visão e capacidade de recrutamento fora da órbita estrita do partido, das suas dinâmicas, dos equilíbrios e da vontade em baralhar o jogo, marcando sempre as cartas para que quem venha a suceder não seja de rutura ou ouse questionar as opções políticas do passado.
O deslaçado modus operandi da divulgação do elenco governativo contrasta com o secretismo enunciado por quem escolhe em diversos momentos anteriores, podendo ser uma retaliação à presidência ou um pontuar de um novo tempo em que a cordialidade da relação formal, em cima da mesa, diverge das caneladas ensaiadas abaixo do tampo da dita. Longe poderão estar os tempos das juras eternas de amor da linha de montagem da coabitação na AutoEuropa.
A estrutura e os protagonistas escolhidos, condicionados pelo simbolismo formal da paridade de género, ficaram manifestamente aquém do potencial que uma maioria absoluta permitiria, colocando-se todo o enfoque agora nos desafios políticos de concretização do programa eleitoral e da execução dos instrumentos de gestão ao dispor. Desde logo, o desafio maior de, apesar da maioria absoluta, desenvolver um exercício governativo, inteligível pelas pessoas e pelo conjunto da sociedade: uma governação com critério. Quem, com humildade democrática e sentido do tempo atual, explique as opções políticas, os caminhos e o sentido da ação.
Estamos e vamos viver grandes dificuldades, pelos problemas acumulados e pelas perspetivas, só uma governação com critério pode sobreviver ao desgaste das perceções erradas, das injustiças e da falta de compreensão sobre o sentido das opções dos decisores políticos e económicos. Sem propaganda excessiva, mas com sentido de informação, é preciso explicar as ações e as omissões. Não o fazer, num quadro em que os recursos financeiros e as possibilidades de intervenção são limitados face às necessidades, significa potenciar o rastilho da contestação, das redes sociais e da agitação popular.
Não será fácil estruturar uma ação, além da gestão do quotidiano, mas essa exigência tem de estar presente num governo com maioria absoluta, ir além da gestão de turno, responder a riscos estruturais que colocam em causa a democracia. De pouco valerão os festejos dos 50 anos de Democracia ou outros, incluindo os do 25 de novembro, se não se responder aos riscos emergentes, alguns resultantes das limitações próprias ou induzidas da ação governativa.
Sim, agora não há desculpa para não se construírem respostas equilibradas para os problemas atuais e para os desafios do futuro, ainda que com projeções nos nossos quotidianos, como acontece com as alterações climáticas.
Não fazer coisas com sentido, real e percecionado, significa ampliar a desmobilização, o descrédito e o alheamento, colocando os cidadãos descontentes à mercê dos populismos, das polarizações temáticas e das pós-verdades os cidadãos digitais e os outros.
Não focar no essencial pode significar dar todo o espaço aos que à esquerda procuram resgatar na rua o peso eleitoral perdido e os que à direita procurarão alavancar no deslaçar democrático o poder eleitoral alcançado.
Este é um tempo de exigência, com muitas rasteiras, razão para se ficar com uma certa sensação de oportunidade perdida na conceção da estrutura e da composição do Governo, em alguns casos sem mínimos de capacidade de interlocução válida com os setores que tutelam. Não colocar os contadores a zero em setores chave, ainda que mantendo a orientação de política, gera a ideia de que à primeira remodelação esses serão os primeiros visados. No rasgo e na configuração da missão, o potencial da maioria absoluta ficou por cumprir, resta-lhe a ação governativa, com critério e sentido, inteligível por todos, ou em alternativa a gritaria social, empresarial e institucional crescente por apoios e o desânimo. Afinal, o dinheiro, por muito que exista, nunca chegará para tudo e quando não há chá ao menos haja simpatia.
Havendo emergências a responder, a maioria absoluta permite estruturar trabalho para responder aos problemas de sempre, da pobreza às desigualdades sociais e territoriais, e para acautelar os pilares da nossa vivência democrática, da participação cívica ao resgate das derivas extremistas em pilares da segurança do Estado. Sendo impossível resolver tudo num ápice, haja vontade e capacidade de sustentar uma ação política centrada no interesse geral, sem excessivos desvios sucessórios ou ponderações desfasadas das pessoas e dos territórios.
Visão, critério, humildade, explicação e interesse geral podem pilares fundamentais para não desbaratar mais uma oportunidade absoluta, de fazer o que ainda não foi feito, responder ao presente e preparar o futuro. No fundo, as marcas de qualquer ambição transformadora em democracia. É trabalhar!
NOTAS FINAIS
A GRATUITIDADE DA VIOLÊNCIA. Os sinais existem e seguem em escalada. A sistemática desvalorização pública e judicial da violência, verbal e física, a par da deficiência da formação individual e consciência de integração comunitária, está a permitir a implantação de um ambiente de violência, com expressões trágicas. O nível de violência verbal das redes sociais ou a facilidade do recurso à violência física nos quotidianos, como nas imagens da guerra de Putin, desculpada pelo PCP, vão criando um ambiente muito perigoso. A sustentada desvalorização das forças de segurança ao longo dos anos, no estatuto, nas condições de ação e no deslaçar da autoridade, materializada a partir de alguns casos concretos e predisposições de media para a abocanhar à primeira falha, contrasta com o silêncio em tempo de perda de vidas ou de violência gratuita sobre agentes ou militares das forças de segurança.
ESTADOS DE EMERGÊNCIA. Primeiro foi a pandemia, agora a guerra. A necessidade aguça o engenho no baixar de guardas dos valores e dos princípios. Já não se trata apenas de arranjar soluções alternativas para suprir as dificuldades das cadeias de distribuição de alimentação energética, mas ter de acorrer em apoio de quem também divergia dos padrões democráticos europeus, como a Polónia ou a Hungria. Tempos de opções difíceis, de realpolitik.