Um trágico toque a despertar


Com o triste desenrolar dos acontecimentos e a emergência das sanções ocidentais, ocorreu-me que a Europa estava (como de costume) de calças na mão: de mãos e pés atados pelo petróleo e gás natural, aos pés de Putin.


No início da guerra da Ucrânia, a seguir à invasão russa, pensei em dedicar este artigo aos imbecis, pequenos idiotas úteis e traidores à democracia que imediatamente apareceram a justificar a brutal agressão do Putin. Os menos grosseiros chamavam a atenção para a necessidade de tentar compreender as razões do psicopata, como se entre uma vítima indefesa e o seu assassino houvesse uma equivalência de valores ambos dignos de consideração. Cheguei à conclusão obvia de que com charlatões intelectuais (1) não vale a pena perder tempo.

Com o triste desenrolar dos acontecimentos e a emergência das sanções ocidentais, ocorreu-me que a Europa estava (como de costume) de calças na mão: de mãos e pés atados pelo petróleo e gaz natural, aos pés de Putin. Um mau lugar para se estar. Ficamos a saber que a Alemanha, a maior nação da Europa, depende agora em 40 a 50% dos hidrocarbonetos russos, razão pela qual os cerca de 1.000 milhões de dólares por dia que pagam por isso vão continuar a fluir para os bolsos do tirano e para financiar o seu esforço de guerra. Isto dava e dá muitos artigos e análises, todos melhores do que eu poderia escrever. 

O isolamento relativo da Rússia em relação ao Ocidente é uma tragédia para a classe média russa e para nós, porque a Rússia é uma grande nação europeia e o seu isolamento empobrece-nos a todos, mas é particularmente trágico que para os russos o melhor desfecho previsível desta guerra horrível que o Putin decidiu levar a cabo, seja o de se tornarem num estado vassalo da China, único verdadeiro vencedor da guerra da Ucrânia.

Putin queria bater o pé com violência e gritar que é relevante no concerto das nações; em vez disso transformou-se num serventuário da China, desprezado pelo Ocidente e dentro em breve, estou certo disso, odiado pelo seu próprio povo, que vai pagar na pele com anos de isolamento coreano, pobreza galopante e idiotia ambiente, as decisões criminosas de quem manda nele. Triste. 

Escreveu Alexander Hamilton nos “Federalist Papers”, pouco antes da revolução francesa, que ‘‘a história ensina-nos que daqueles homens que destruíram as liberdades das repúblicas, a maior parte começou as suas carreiras a cortejar assiduamente a vontade do povo, começando como demagogos e acabando como tiranos”. 

Assim é na verdade com os Putins, Erdogans, Chavez e Maduros e tantos outros vilões do nosso mundo. Aquilo que os distingue não é facto de terem destruído a democracia que os elevou ao poder, mas o grau de psicopatia, de indiferença ao sofrimento dos seus concidadãos e de brutalidade potencial. 

Entre um açougueiro encharcado em sangue como Assad (que por acaso é médico) e a imagem de pompa e circunstância que o psicopata do Kremlin procura dar de si, pode parecer não haver nada em comum, mas há: um total desprezo pelas regras, normas, costumes ou tradições políticas dos seus respetivos países; Há o facto de votarem à mais negra ignorância as instituições, as mediações da vontade popular e do sentimento das elites, sejam democráticas ou de governo de consenso. 

Como é que um tirano que iniciou a vida politica “a cortejar assiduamente a vontade do povo”, de cujos votos a sua ascensão dependeu, chegou a esta posição de poder aterrorizar os seus concidadãos (ainda agora o líder da oposição, Navalny, foi condenado a nove anos adicionais de prisão – ! – e um “juiz” russo proibiu o uso de redes sociais com o argumento de que transmitem propaganda violenta contra a Rússia) e ameaçar o resto do mundo com o uso potencial da arma nuclear?

A forma como Putin se assenhorou paulatinamente de todas as alavancas do poder é bem conhecida e responde a um figurino clássico: uma gradual mudança das leis para tornar a vida da oposição cada vez mais difícil, uma colonização dos tribunais por trolls caninamente fieis ao regime, a utilização do nacionalismo como uma arma política e uma forma doentia de ideologia oficial, a demonização do Ocidente e, em cima de tudo isto, conseguiu sujeitar a Europa ocidental a uma dependência criminosa dos hidrocarbonetos russos, que lhe asseguram, bem como aos seus serventuários um enriquecimento sem limites de verdadeiros sátrapas orientais. 

Este percurso não é novo. Começou por volta do início do século, quando Putin substitui Ieltsin, e assegurou aos seus concidadãos um caminho de prosperidade, segurança e recuperação da dignidade nacional depois do colapso caótico da União Soviética. 

A Europa ocidental viu e assistiu. Ajudou e colaborou. Fechou os olhos aos abusos, fingiu que ignorava quando o tirano ordenava o assassínio de opositores no estrangeiro, mandava assassinar jornalistas na Rússia, fazia e destituía bilionários instantâneos a quem a Europa recebia o dinheiro, vendia casas sumptuosas, acolhia os super-iates, em suma, era a Disneylândia perfeita para os aparatchiks russos e as suas acompanhantes de luxo. 

Em 20 anos, Putin invadiu a Geórgia, destruiu a Chechénia, destruiu a Síria, invadiu e anexou a Crimeia, semeou a insegurança em todo o território à volta do Mar Negro e no Mediterrâneo oriental, encorajou as aventuras proto imperiais do seu aliado Erdogan, sustentou o regime tirânico do seu serventuário Lukashenko, na Bielorrússia. Nada disto impediu a Europa ocidental de continuar a comprar-lhe o petróleo e o gás e a ficar refém dos seus caprichos geoestratégicos. 

Com todas as suas atinentes tragédias e o sofrimento inenarrável dos ucranianos que a esta hora morrem pelos princípios da liberdade e da democracia pelos quais nós parecemos incapazes de aguentar um aumento de combustíveis ou de passar um pouco menos de calor no Inverno, a horrível guerra da Ucrânia pode ter pelo menos uma vantagem: a de ser um toque a despertar para a Europa ocidental. 

O mundo, como dizia Vasco Pulido Valente, está perigoso, mais do que nunca quando um tirano que nós ajudamos a singrar, aterroriza o seu povo e ameaça com o holocausto o resto do mundo, porque pode: tem cerca de seis mil ogivas nucleares. 

Compreenderão os Europeus, finalmente, que a democracia e a liberdade não nos conferem apenas direitos, mas também nos impõe a obrigação de a defender e acautelar? Essa é a pergunta à qual somos chamados a responder por estes dias. 

(1) Expressão genial de António Barreto em artigo no jornal Público

Advogado, ex-secretário de estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma 
Democracia de Qualidade

Um trágico toque a despertar


Com o triste desenrolar dos acontecimentos e a emergência das sanções ocidentais, ocorreu-me que a Europa estava (como de costume) de calças na mão: de mãos e pés atados pelo petróleo e gás natural, aos pés de Putin.


No início da guerra da Ucrânia, a seguir à invasão russa, pensei em dedicar este artigo aos imbecis, pequenos idiotas úteis e traidores à democracia que imediatamente apareceram a justificar a brutal agressão do Putin. Os menos grosseiros chamavam a atenção para a necessidade de tentar compreender as razões do psicopata, como se entre uma vítima indefesa e o seu assassino houvesse uma equivalência de valores ambos dignos de consideração. Cheguei à conclusão obvia de que com charlatões intelectuais (1) não vale a pena perder tempo.

Com o triste desenrolar dos acontecimentos e a emergência das sanções ocidentais, ocorreu-me que a Europa estava (como de costume) de calças na mão: de mãos e pés atados pelo petróleo e gaz natural, aos pés de Putin. Um mau lugar para se estar. Ficamos a saber que a Alemanha, a maior nação da Europa, depende agora em 40 a 50% dos hidrocarbonetos russos, razão pela qual os cerca de 1.000 milhões de dólares por dia que pagam por isso vão continuar a fluir para os bolsos do tirano e para financiar o seu esforço de guerra. Isto dava e dá muitos artigos e análises, todos melhores do que eu poderia escrever. 

O isolamento relativo da Rússia em relação ao Ocidente é uma tragédia para a classe média russa e para nós, porque a Rússia é uma grande nação europeia e o seu isolamento empobrece-nos a todos, mas é particularmente trágico que para os russos o melhor desfecho previsível desta guerra horrível que o Putin decidiu levar a cabo, seja o de se tornarem num estado vassalo da China, único verdadeiro vencedor da guerra da Ucrânia.

Putin queria bater o pé com violência e gritar que é relevante no concerto das nações; em vez disso transformou-se num serventuário da China, desprezado pelo Ocidente e dentro em breve, estou certo disso, odiado pelo seu próprio povo, que vai pagar na pele com anos de isolamento coreano, pobreza galopante e idiotia ambiente, as decisões criminosas de quem manda nele. Triste. 

Escreveu Alexander Hamilton nos “Federalist Papers”, pouco antes da revolução francesa, que ‘‘a história ensina-nos que daqueles homens que destruíram as liberdades das repúblicas, a maior parte começou as suas carreiras a cortejar assiduamente a vontade do povo, começando como demagogos e acabando como tiranos”. 

Assim é na verdade com os Putins, Erdogans, Chavez e Maduros e tantos outros vilões do nosso mundo. Aquilo que os distingue não é facto de terem destruído a democracia que os elevou ao poder, mas o grau de psicopatia, de indiferença ao sofrimento dos seus concidadãos e de brutalidade potencial. 

Entre um açougueiro encharcado em sangue como Assad (que por acaso é médico) e a imagem de pompa e circunstância que o psicopata do Kremlin procura dar de si, pode parecer não haver nada em comum, mas há: um total desprezo pelas regras, normas, costumes ou tradições políticas dos seus respetivos países; Há o facto de votarem à mais negra ignorância as instituições, as mediações da vontade popular e do sentimento das elites, sejam democráticas ou de governo de consenso. 

Como é que um tirano que iniciou a vida politica “a cortejar assiduamente a vontade do povo”, de cujos votos a sua ascensão dependeu, chegou a esta posição de poder aterrorizar os seus concidadãos (ainda agora o líder da oposição, Navalny, foi condenado a nove anos adicionais de prisão – ! – e um “juiz” russo proibiu o uso de redes sociais com o argumento de que transmitem propaganda violenta contra a Rússia) e ameaçar o resto do mundo com o uso potencial da arma nuclear?

A forma como Putin se assenhorou paulatinamente de todas as alavancas do poder é bem conhecida e responde a um figurino clássico: uma gradual mudança das leis para tornar a vida da oposição cada vez mais difícil, uma colonização dos tribunais por trolls caninamente fieis ao regime, a utilização do nacionalismo como uma arma política e uma forma doentia de ideologia oficial, a demonização do Ocidente e, em cima de tudo isto, conseguiu sujeitar a Europa ocidental a uma dependência criminosa dos hidrocarbonetos russos, que lhe asseguram, bem como aos seus serventuários um enriquecimento sem limites de verdadeiros sátrapas orientais. 

Este percurso não é novo. Começou por volta do início do século, quando Putin substitui Ieltsin, e assegurou aos seus concidadãos um caminho de prosperidade, segurança e recuperação da dignidade nacional depois do colapso caótico da União Soviética. 

A Europa ocidental viu e assistiu. Ajudou e colaborou. Fechou os olhos aos abusos, fingiu que ignorava quando o tirano ordenava o assassínio de opositores no estrangeiro, mandava assassinar jornalistas na Rússia, fazia e destituía bilionários instantâneos a quem a Europa recebia o dinheiro, vendia casas sumptuosas, acolhia os super-iates, em suma, era a Disneylândia perfeita para os aparatchiks russos e as suas acompanhantes de luxo. 

Em 20 anos, Putin invadiu a Geórgia, destruiu a Chechénia, destruiu a Síria, invadiu e anexou a Crimeia, semeou a insegurança em todo o território à volta do Mar Negro e no Mediterrâneo oriental, encorajou as aventuras proto imperiais do seu aliado Erdogan, sustentou o regime tirânico do seu serventuário Lukashenko, na Bielorrússia. Nada disto impediu a Europa ocidental de continuar a comprar-lhe o petróleo e o gás e a ficar refém dos seus caprichos geoestratégicos. 

Com todas as suas atinentes tragédias e o sofrimento inenarrável dos ucranianos que a esta hora morrem pelos princípios da liberdade e da democracia pelos quais nós parecemos incapazes de aguentar um aumento de combustíveis ou de passar um pouco menos de calor no Inverno, a horrível guerra da Ucrânia pode ter pelo menos uma vantagem: a de ser um toque a despertar para a Europa ocidental. 

O mundo, como dizia Vasco Pulido Valente, está perigoso, mais do que nunca quando um tirano que nós ajudamos a singrar, aterroriza o seu povo e ameaça com o holocausto o resto do mundo, porque pode: tem cerca de seis mil ogivas nucleares. 

Compreenderão os Europeus, finalmente, que a democracia e a liberdade não nos conferem apenas direitos, mas também nos impõe a obrigação de a defender e acautelar? Essa é a pergunta à qual somos chamados a responder por estes dias. 

(1) Expressão genial de António Barreto em artigo no jornal Público

Advogado, ex-secretário de estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma 
Democracia de Qualidade