Sanchez e a última colónia africana


Com esta decisão, Sanchez fez uma escolha. Não apenas pela indiferença humanitária perante um povo que vive maioritariamente em campos de refugiados, mas pela negação do direito histórico de um povo colonizado à sua própria existência. 


A guerra e as experiências que testam os limites da humanidade revelam verdades envergonhadas sobre nós e os outros. Perante a invasão da Ucrânia, uma dessas verdades foi a extraordinária mobilização do povo português na condenação do imperialismo russo e na organização da ajuda humanitária para combatentes e refugiados de guerra.
É difícil explicar o que motiva essa disponibilidade, mas ela existe e isso permite-nos arriscar. Inspiração religiosa, consciência política ou espírito humanitário são historicamente os alimentos de todas as vagas anti-guerra. A esses sobrepõe-se outro, massivo, que é a construção de identificação ou de alteridade em relação às vítimas. E é nesse processo que muitas vezes a humanidade se perde, exposta a preconceitos raciais ou concepções coloniais.

Todos assistimos a líderes mundiais, alguns até então insuspeitos de xenofobia ou racismo, caírem na tentação de justificar a sua emotividade com a cor da pele ou dos olhos das vítimas da guerra: “É muito emocionante para mim, porque vejo europeus com cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin”, disse à BBC o ex-procurador ucraniano, David Sakvarelidze; “este não é um lugar, com todo respeito, como Iraque, ou Afeganistão, que tem visto conflitos por décadas. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, afirmou Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News. O comentador da Al Jazeera, Peter Dobbie, tocou no nervo: “estas não são pessoas a tentar fugir do Norte da África. Eles parecem-se com qualquer família europeia que você poderia ter como vizinhos”. Ou, numa versão mais local, “não há palavras. A receber a Dasha, lourinha, de olhos azuis”, escreveu Pedro Santana Lopes.

Esta introdução não faz mais do que apontar uma evidência e a necessidade – filosófica, espiritual, humanitária, civilizacional, o que entenderem – de a ultrapassarmos. Os limites do que as sociedades ditas ocidentais reconhecem como humanidade são demasiado curtos, demasiado coloniais, demasiado perigosos.

Se alargarmos os horizontes – apenas uns centímetros – veremos na ocupação da Palestina ou do Saara Ocidental os mesmos motivos para uma mobilização coletiva pela paz e pela a autodeterminação dos povos. Aliás, apesar das recentes comparações com a situação ucraniana, é com o Saara Ocidental que mais se assemelha, do ponto de vista da História e do Direito Internacional, a questão de Timor-Leste. 

No século XXI, em todo o território africano, permanece uma colónia. Em Portugal poucos se aperceberão desta história, mas ela dura há quase cinquenta anos.

O território do Saara Ocidental foi ocupado por espanhóis até 1975. E, apesar da promessa feita ao povo sarauí de um referendo de autodeterminação que poderia levar à independência do território, a Espanha cedeu a administração a Marrocos e à Mauritânia em troca do reconhecimento pelos EUA do rei Juan Carlos. Estes foram os chamados acordos de Madrid, nunca reconhecidos pela ONU, que até hoje considera o Saara Ocidental um território não autónomo à espera de descolonização.

A Mauritânia acabou por ser rechaçada do território saharaui. Mas Marrocos avançou com uma brutal repressão militar, aumentando as ocupações até abranger quase 80% do território do Saara Ocidental e explorar as suas riquezas naturais.

No final do ano passado, Donald Trump reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental. Esta semana, a antiga potência colonial – Espanha – seguiu-lhe os passos. Numa carta dirigida ao rei de Marrocos, o primeiro-ministro espanhol Pedro Sanchez abandona qualquer pretensão de descolonização e defende um “regime de autonomia especial” para o Saara Ocidental. Cedendo à chantagem, quer da monarquia marroquina, quer dos Estados Unidos, o Estado espanhol abandonou de novo o povo saharaui às mãos do ocupante. 

Com esta decisão, Sanchez cometeu fez uma escolha. Não apenas pela indiferença humanitária perante um povo que vive maioritariamente em campos de refugiados, mas pela negação do direito histórico de um povo colonizado à sua própria existência. Onde é que já ouvimos isto… e quem diria que seria repetido por quem menos se esperava, exatamente no momento em que podemos identificar o contraste claro com a legítima resistência ucraniana a uma invasão imperialista.

Deputada do Bloco de Esquerda

Sanchez e a última colónia africana


Com esta decisão, Sanchez fez uma escolha. Não apenas pela indiferença humanitária perante um povo que vive maioritariamente em campos de refugiados, mas pela negação do direito histórico de um povo colonizado à sua própria existência. 


A guerra e as experiências que testam os limites da humanidade revelam verdades envergonhadas sobre nós e os outros. Perante a invasão da Ucrânia, uma dessas verdades foi a extraordinária mobilização do povo português na condenação do imperialismo russo e na organização da ajuda humanitária para combatentes e refugiados de guerra.
É difícil explicar o que motiva essa disponibilidade, mas ela existe e isso permite-nos arriscar. Inspiração religiosa, consciência política ou espírito humanitário são historicamente os alimentos de todas as vagas anti-guerra. A esses sobrepõe-se outro, massivo, que é a construção de identificação ou de alteridade em relação às vítimas. E é nesse processo que muitas vezes a humanidade se perde, exposta a preconceitos raciais ou concepções coloniais.

Todos assistimos a líderes mundiais, alguns até então insuspeitos de xenofobia ou racismo, caírem na tentação de justificar a sua emotividade com a cor da pele ou dos olhos das vítimas da guerra: “É muito emocionante para mim, porque vejo europeus com cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin”, disse à BBC o ex-procurador ucraniano, David Sakvarelidze; “este não é um lugar, com todo respeito, como Iraque, ou Afeganistão, que tem visto conflitos por décadas. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, afirmou Charlie D’Agata, do canal norte-americano CBS News. O comentador da Al Jazeera, Peter Dobbie, tocou no nervo: “estas não são pessoas a tentar fugir do Norte da África. Eles parecem-se com qualquer família europeia que você poderia ter como vizinhos”. Ou, numa versão mais local, “não há palavras. A receber a Dasha, lourinha, de olhos azuis”, escreveu Pedro Santana Lopes.

Esta introdução não faz mais do que apontar uma evidência e a necessidade – filosófica, espiritual, humanitária, civilizacional, o que entenderem – de a ultrapassarmos. Os limites do que as sociedades ditas ocidentais reconhecem como humanidade são demasiado curtos, demasiado coloniais, demasiado perigosos.

Se alargarmos os horizontes – apenas uns centímetros – veremos na ocupação da Palestina ou do Saara Ocidental os mesmos motivos para uma mobilização coletiva pela paz e pela a autodeterminação dos povos. Aliás, apesar das recentes comparações com a situação ucraniana, é com o Saara Ocidental que mais se assemelha, do ponto de vista da História e do Direito Internacional, a questão de Timor-Leste. 

No século XXI, em todo o território africano, permanece uma colónia. Em Portugal poucos se aperceberão desta história, mas ela dura há quase cinquenta anos.

O território do Saara Ocidental foi ocupado por espanhóis até 1975. E, apesar da promessa feita ao povo sarauí de um referendo de autodeterminação que poderia levar à independência do território, a Espanha cedeu a administração a Marrocos e à Mauritânia em troca do reconhecimento pelos EUA do rei Juan Carlos. Estes foram os chamados acordos de Madrid, nunca reconhecidos pela ONU, que até hoje considera o Saara Ocidental um território não autónomo à espera de descolonização.

A Mauritânia acabou por ser rechaçada do território saharaui. Mas Marrocos avançou com uma brutal repressão militar, aumentando as ocupações até abranger quase 80% do território do Saara Ocidental e explorar as suas riquezas naturais.

No final do ano passado, Donald Trump reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental. Esta semana, a antiga potência colonial – Espanha – seguiu-lhe os passos. Numa carta dirigida ao rei de Marrocos, o primeiro-ministro espanhol Pedro Sanchez abandona qualquer pretensão de descolonização e defende um “regime de autonomia especial” para o Saara Ocidental. Cedendo à chantagem, quer da monarquia marroquina, quer dos Estados Unidos, o Estado espanhol abandonou de novo o povo saharaui às mãos do ocupante. 

Com esta decisão, Sanchez cometeu fez uma escolha. Não apenas pela indiferença humanitária perante um povo que vive maioritariamente em campos de refugiados, mas pela negação do direito histórico de um povo colonizado à sua própria existência. Onde é que já ouvimos isto… e quem diria que seria repetido por quem menos se esperava, exatamente no momento em que podemos identificar o contraste claro com a legítima resistência ucraniana a uma invasão imperialista.

Deputada do Bloco de Esquerda