A justiça entre a guerra e a paz


Sempre me impressionou a propensão de todos os poderes, de todos os regimes, para o uso dos tribunais, tendo em vista a realização dos objetivos políticos que não querem assumir diretamente.


Tudo o que diz respeito à guerra excita os espíritos e, mais ainda, os dos que verdadeiramente nela não combatem.

Estes, os combatentes, têm pouca oportunidade de se dedicar a exercícios reflexivos e espirituais e, por convicção ou obrigação, devem, antes, exercitar-se para matar ou para morrer.

São, portanto, os que, de longe, assistem, empenhados, às carnificinas que desenvolvem mais e mais refinadas teorias sobre como lidar com a guerra e os seus combatentes.

Propõem, portanto, medidas exemplares que se destinam a premiar ou a sancionar os que ganham ou os que perdem.

Para os que nela tomam partido, mas não participam diretamente nas ações armadas, a guerra produz, de facto, uma exaltação e uma expressiva vontade de interferir de qualquer outro modo.

Tais formas de intervenção indiretas – umas mais entusiastas e publicitadas, outras mais cautas e discretas –  justificam, ao nível da consciência individual e coletiva, a ausência dos mais exaltados no envolvimento direto no combate.

Muitos, com espírito verdadeiramente generoso, oferecem-se, por isso, para curar e transportar feridos, para fornecer víveres e acolher vítimas e até para, por via da arte, fazer que estas esqueçam, por momentos, as agruras da sua situação.

Outros esbracejam apenas e procuram intervir, sobretudo mediaticamente, apoiando o campo que defendem e agredindo aquele que abominam.

Num outro plano – e isso tem acontecido algumas vezes para evitar, de facto, a terrível e cega vindicta dos vencedores – desenvolvem-se, também, iniciativas na área da justiça, que se propõem, precisamente, regular os diferendos e, de alguma maneira, acertar as culpas dos que conduziram à guerra.

Sempre me impressionou, porém, a propensão de todos os poderes, de todos os regimes, para o uso dos tribunais, tendo em vista a realização dos objetivos políticos que não querem assumir diretamente.

Muita da judicialização da vida atual resulta, aliás, de tal atitude.

No que se refere às guerras, mais impressionado fico ante tais opções, pois nunca consegui alcançar cabalmente que efeito real pode vir a ter a posteriori a ação da Justiça no julgamento da conduta momentânea de um soldado no teatro e fragor da guerra.

Claro que sei que a ação da justiça se pode justificar, nestas situações, para, antes do mais, prevenir ordens e orientações de combate que, pela sua natureza, violam uma consciência já alargada da humanidade sobre o que pode ou não ser feito numa guerra, ou por causa dela.

O problema coloca-se, contudo, no uso – digamos assim – pouco objetivo que, dos tribunais internacionais, é, em geral, realizado depois.

Com efeito, muitos países não subscreveram os tratados que os instituíram – pelo que os seus nacionais não são, em princípio, abrangidos pela sua jurisdição -, outros, de tão poderosos, dificilmente aceitam a intervenção de uma justiça que não controlam de facto.

Por isso, na verdade, estes tribunais – mesmo quando preinstituídos aos conflitos sobre que vão judiciar – acabam, queiram ou não queiram os magistrados que os integram por, as mais das vezes, fazerem apenas a justiça que os vencedores permitem ou aceitam que se faça.

«Como, em Trials of State diz Lord Jonatahn Sumption, Juiz inglês do Supremo Tribunal e historiador, citando e adaptando a célebre frase Clausewitz sobre, precisamente, a guerra: «a lei é agora a continuação da política por outros meios».

Tudo isto é sabido e tem dado origem a reflexões e discussões, que, genuinamente, procuram otimizar os sistemas de justiça internacional, tentando, na medida do possível, torna-los mais abrangentes e isentos.

 Muitos são os que reconhecem, no entanto, que tais tribunais não conseguiram ainda alcançar o seu desígnio pacificador geral.

É, contudo, precisamente neste ponto que algumas experiências, com as que aconteceram na África do Sul e na América Latina, podem constituir um ensinamento importante para a realização da paz: em vez de procurarem apenas o culpado e a definição da sua culpa para aplicar uma sanção, tais iniciativas preocuparam-se, antes, em encontrar soluções de diálogo e reconciliação entre as partes desavindas.

Num momento em que urge a paz e em que algumas iniciativas precipitadas da justiça podem, porventura, mais do que contribuir para reconciliação dos contendores, propiciar armadilhas de difícil desmontagem nos tratados de fim das hostilidades, seria bom que todos – e especialmente os juristas – se debruçassem sobre as virtualidades de outros métodos de composição de conflitos.

Recordo-me de, um dia, tentar convencer um procurador francês sobre as vantagens do nosso princípio da obrigatoriedade da ação penal sobre o princípio da oportunidade de a concretizar, que existia e ainda existe no seu país.

A reposta –  em forma de questão – com que ele me respondeu deixou-me, então, perplexo:

«Então, quando numa situação de grave conflito social, a vossa polícia intervém e prende manifestantes, alguns violentos, e depois é necessário regular politicamente o referido conflito e dar-lhe um fim, o que fazem os procuradores portugueses aos detidos: levam-nos a julgamento, ou, em nome da paz social restabelecida, arquivam os processos?»

Hoje, talvez devido à idade e à maturidade que ela traz consigo, estou em muito melhores condições para alcançar o sentido político da resposta daquele procurador francês, jurista ilustre e filho de uma família de outros ilustres juristas, por acaso de ascendência portuguesa antiga.    

A justiça entre a guerra e a paz


Sempre me impressionou a propensão de todos os poderes, de todos os regimes, para o uso dos tribunais, tendo em vista a realização dos objetivos políticos que não querem assumir diretamente.


Tudo o que diz respeito à guerra excita os espíritos e, mais ainda, os dos que verdadeiramente nela não combatem.

Estes, os combatentes, têm pouca oportunidade de se dedicar a exercícios reflexivos e espirituais e, por convicção ou obrigação, devem, antes, exercitar-se para matar ou para morrer.

São, portanto, os que, de longe, assistem, empenhados, às carnificinas que desenvolvem mais e mais refinadas teorias sobre como lidar com a guerra e os seus combatentes.

Propõem, portanto, medidas exemplares que se destinam a premiar ou a sancionar os que ganham ou os que perdem.

Para os que nela tomam partido, mas não participam diretamente nas ações armadas, a guerra produz, de facto, uma exaltação e uma expressiva vontade de interferir de qualquer outro modo.

Tais formas de intervenção indiretas – umas mais entusiastas e publicitadas, outras mais cautas e discretas –  justificam, ao nível da consciência individual e coletiva, a ausência dos mais exaltados no envolvimento direto no combate.

Muitos, com espírito verdadeiramente generoso, oferecem-se, por isso, para curar e transportar feridos, para fornecer víveres e acolher vítimas e até para, por via da arte, fazer que estas esqueçam, por momentos, as agruras da sua situação.

Outros esbracejam apenas e procuram intervir, sobretudo mediaticamente, apoiando o campo que defendem e agredindo aquele que abominam.

Num outro plano – e isso tem acontecido algumas vezes para evitar, de facto, a terrível e cega vindicta dos vencedores – desenvolvem-se, também, iniciativas na área da justiça, que se propõem, precisamente, regular os diferendos e, de alguma maneira, acertar as culpas dos que conduziram à guerra.

Sempre me impressionou, porém, a propensão de todos os poderes, de todos os regimes, para o uso dos tribunais, tendo em vista a realização dos objetivos políticos que não querem assumir diretamente.

Muita da judicialização da vida atual resulta, aliás, de tal atitude.

No que se refere às guerras, mais impressionado fico ante tais opções, pois nunca consegui alcançar cabalmente que efeito real pode vir a ter a posteriori a ação da Justiça no julgamento da conduta momentânea de um soldado no teatro e fragor da guerra.

Claro que sei que a ação da justiça se pode justificar, nestas situações, para, antes do mais, prevenir ordens e orientações de combate que, pela sua natureza, violam uma consciência já alargada da humanidade sobre o que pode ou não ser feito numa guerra, ou por causa dela.

O problema coloca-se, contudo, no uso – digamos assim – pouco objetivo que, dos tribunais internacionais, é, em geral, realizado depois.

Com efeito, muitos países não subscreveram os tratados que os instituíram – pelo que os seus nacionais não são, em princípio, abrangidos pela sua jurisdição -, outros, de tão poderosos, dificilmente aceitam a intervenção de uma justiça que não controlam de facto.

Por isso, na verdade, estes tribunais – mesmo quando preinstituídos aos conflitos sobre que vão judiciar – acabam, queiram ou não queiram os magistrados que os integram por, as mais das vezes, fazerem apenas a justiça que os vencedores permitem ou aceitam que se faça.

«Como, em Trials of State diz Lord Jonatahn Sumption, Juiz inglês do Supremo Tribunal e historiador, citando e adaptando a célebre frase Clausewitz sobre, precisamente, a guerra: «a lei é agora a continuação da política por outros meios».

Tudo isto é sabido e tem dado origem a reflexões e discussões, que, genuinamente, procuram otimizar os sistemas de justiça internacional, tentando, na medida do possível, torna-los mais abrangentes e isentos.

 Muitos são os que reconhecem, no entanto, que tais tribunais não conseguiram ainda alcançar o seu desígnio pacificador geral.

É, contudo, precisamente neste ponto que algumas experiências, com as que aconteceram na África do Sul e na América Latina, podem constituir um ensinamento importante para a realização da paz: em vez de procurarem apenas o culpado e a definição da sua culpa para aplicar uma sanção, tais iniciativas preocuparam-se, antes, em encontrar soluções de diálogo e reconciliação entre as partes desavindas.

Num momento em que urge a paz e em que algumas iniciativas precipitadas da justiça podem, porventura, mais do que contribuir para reconciliação dos contendores, propiciar armadilhas de difícil desmontagem nos tratados de fim das hostilidades, seria bom que todos – e especialmente os juristas – se debruçassem sobre as virtualidades de outros métodos de composição de conflitos.

Recordo-me de, um dia, tentar convencer um procurador francês sobre as vantagens do nosso princípio da obrigatoriedade da ação penal sobre o princípio da oportunidade de a concretizar, que existia e ainda existe no seu país.

A reposta –  em forma de questão – com que ele me respondeu deixou-me, então, perplexo:

«Então, quando numa situação de grave conflito social, a vossa polícia intervém e prende manifestantes, alguns violentos, e depois é necessário regular politicamente o referido conflito e dar-lhe um fim, o que fazem os procuradores portugueses aos detidos: levam-nos a julgamento, ou, em nome da paz social restabelecida, arquivam os processos?»

Hoje, talvez devido à idade e à maturidade que ela traz consigo, estou em muito melhores condições para alcançar o sentido político da resposta daquele procurador francês, jurista ilustre e filho de uma família de outros ilustres juristas, por acaso de ascendência portuguesa antiga.