Viver em sociedade implica a existência de regras e de uma previsibilidade mínima que nos permitam a adoção de comportamentos individuais e comunitários suscetíveis de gerarem condições de expressão de personalidade e de interação social, sem atropelos às esferas de liberdade de cada um e com um sentido geral de equilíbrio, justiça e partilha de valores. Existem regras e estão identificadas penalizações para os incumprimentos, mas depois existem as vacas sagradas do arbítrio, em que, sob a capa de missões fundamentais para os cidadãos e para a comunidade, se cometem as maiores atrocidades simbólicas e reais, sem que os responsáveis assumam qualquer responsabilidade relevante.
O espetro noticioso está pejado de exemplos, alguns fundados no critério jornalístico ou de vendas que, por ausência de explicação do sentido ou das opções, dão expressão a desequilíbrios que fomentam a divergência com os valores, os princípios e as normas que deveriam existir para todos. Não haver explicação para os desvios revela uma espécie de supremacia do critério, apenas conhecido pelos próprios, mas sem possibilidade de serem compreendidos pela população ou compaginados com mínimos de bom senso.
A invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin transporta às costas toda a matriz ideológica soviética do PCP, ao ponto de, num primeiro momento ter colocado ao mesmo nível de responsabilidades pelo conflito, os seus comparsas russos e a NATO, posicionando-se depois como defensor da paz, ignorando os regimes e as latitudes que idolatra em que a realidade foi e é muito diferente da paz, da liberdade e da democracia efetiva que defende nos discursos. Que o partido se babe por tudo o que tem rótulo soviético, já sabemos. Que vá ao ponto de negar as evidências das atrocidades passadas e da barbárie dos nossos dias para manter o escape ideológico em relação ao seu peso atual, também é evidente. A psicologia e a psiquiatria devem explicar. Que durante quatro anos o PCP tenha suportado uma solução governativa comprometida com a União Europeia e com a NATO é dos livros. Depois de desculpar Putin, não precisa de se armar em promotor da paz, com cartazes na fachada do Centro de Trabalho do Teatro Vitória, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, com a mesma imagem que depois é usada nas bandeiras e cartazes de alegados movimentos da sociedade civil que, à primeira oportunidade, deixam a Ucrânia de lado para vergastar a NATO e a União Europeia. Tudo sob a complacência acéfala de media que colocaram na agenda e fazem a cobertura de iniciativas satélites do PCP, tal como Putin já faz e quer fazer ainda mais com as nações resultantes da ex-URSS. Sem critério há branqueamento e falta de senso.
Mas, além do domínio da falta de critério, há outra expressão maior do fenómeno que é a geometria variável. Determinar que um determinado tema, em função do visado, tem alguma, menor ou maior expressão mediática, com evidente assassinato do tratamento equitativo das realidades, tudo a mando do critério, neste caso jornalístico, logo, sem alegada possibilidade de discussão. É ver as modelações de critérios, os truques de desvalorização, as expressões de encomendas e a ampliação de certos e determinados conteúdos, amiúde com assuntos requentados. Senão vejamos.
Qual o critério, mesmo jornalístico, para em processos de investigação judicial, projetarem um cidadão como acionista do Sport Lisboa e Benfica, rotulando-o de Rei dos Frangos, e omitirem que outro cidadão é o maior acionista do Sporting Clube Portugal, colocando na órbita dos maiores cambalachos bancários?
Ou qual o critério para que a violência doméstica, que é uma das maiores pragas comportamentais da nossa sociedade, seja desvalorizada quando protagonizada pelo altaneiro insolvente diretor de verbalização comunicacional de um clube a norte, sem qualquer incómodo da instituição pelos media?
O problema é que o surto de supremacia do critério contagiou um conjunto de protagonistas, instituições e setores da sociedade portuguesa que se julgam acima de tudo e com uma margem de discricionariedade ilimitada, que só poderá chocar com cidadãos e comunidades exigentes.
Como é possível que uma protagonista do sistema judicial, podia ser um juiz, alivie as medidas de coação de um neonazi para que se possa deslocar para um palco de guerra, para combater, numa realidade que não tem cobertura do direito internacional e para uma atividade claramente desaconselhada pelo Estado Português, sem qualquer cobertura das convenções internacionais que definem regras mínimas para as situações de conflito. O alarme social é argumento só para alguns? Que raio de sinal se está a passar para a sociedade? E o Conselho Superior da Magistratura, tal como no caso dos magistrados que se recusaram a realizar buscas num clube a norte, nada.
A supremacia do critério é tudo isto. É a expressão de opções e decisões sem qualquer nexo com a realidade, desfasadas do que deveriam e com um perigoso sentido social de promoção do deslaço na observância das regras do bom senso e do que é equilibrado e justo.
Num tempo em que às antigas dificuldades, algumas estruturais, se vão somar os impactos da pandemia e as consequências diferidas da guerra, é meio caminho andado para o disparate, mas é o que temos e muitos gostam. Serão, todos, coniventes com os supremacistas do critério. Acima de tudo, acima de todos. Por mim, não.
NOTAS FINAIS
FIM À VISTA DA SUSPENSÃO DEMOCRÁTICA PARLAMENTAR. Entramos na semana do apuramento da repetição eleitoral do círculo eleitoral, da indicação do novo governo e da convergência para a normalidade parlamentar e governativa. Espera-se uma visão para o país e um governo em linha com o conforto e previsibilidade da maioria absoluta, com nomes que surpreendam e soluções que contrariem o ambiente depressivo e nebuloso geral, com a rua a preparar-se para ser palco das insatisfações da vida e dos resultados eleitorais. Espera-se rasgo, visão e senso.
RESOLVER UMA CRISE, CRIAR OUTRA, ENERGÉTICA, MAIS UMA. Para resolver uma crise com Marrocos, o governo espanhol mudou de posição sobre o Saara Ocidental e as pretensões de quase 5 décadas da Frente Polisário de um referendo para a autodeterminação. Conclusão, amainou uma crise, abriu uma nova crise com a Argélia, o maior fornecedor de gás natural de Espanha e uma possibilidade de alternativa à dependência russa.
BARBÁRIE EM VIDA, BARBÁRIE NA MORTE. A pandemia e as guerras, a da Ucrânia e as outras, banalizaram a morte. Desfilam perante nós, quase indiferentes, muito indolores, números de perdas de vida. Agora, nos Estados Unidos, por decisão estadual, a Carolina do Sul junta-se ao Mississippi, ao Oklahoma e ao Utah na execução da pena de morte por pelotão de fuzilamento. Não há morte para os anacronismos?
Escreve à segunda-feira