As armadilhas do teletrabalho – I


O teletrabalho pode não favorecer a vida pessoal nem familiar, na medida em que não diferencia e não separa as áreas, nem os tempos, nem os espaços. 


Em tempos de encantamento com o teletrabalho, em regime completo ou parcial (num registo híbrido, como agora se diz), arrisco-me, porventura, e muito mal comparado, a que me chamem o que em tempos César Monteiro chamou a Manoel de Oliveira: um fóssil.

Na verdade, não é coisa que me encante, e embora perceba as vantagens que tem (que são algumas, mas não são muitas), vejo desvantagens e perigos, e não gosto do que vejo; nem de algum encantamento que, avessos como tendemos a ser hoje ao pensamento complexo, fica pela rama e pela rapidez sedutoras e não para, escuta e olha q.b.

Tem vantagens, naturalmente, seja no que toca à flexibilidade pessoal e profissional, seja no que toca ao ambiente (sobretudo em matéria de deslocações / viagens), seja no que toca a custos; et cetera. E tem, como medida de recurso, como se viu na pandemia, a grande vantagem de permitir que tudo vá mais ou menos andando em tempos de exceção.

Mas acabam aqui as vantagens, e a palavra exceção quadra bem com a viragem do foco para as desvantagens, os problemas e os perigos, porque se pode tender agora a caminhar para tornar regra ou quase regra o que, por definição, deveria ser exceção ou pelo menos residual ou circunscrito a certas áreas e a algumas situações. Sendo também certo que me atrevo a dizer que algumas pessoas que, entusiasmadas e de boa-fé, reclamam para si o teletrabalho (completo ou em hibridismo) podem não ter medido bem as implicações. Vejamos a coisa, em quatro grandes tópicos, que sintetizam a minha opinião (seguindo aliás outras, que me parecem avisadas).

Primeiro, o tema pessoal. O teletrabalho favorece a flexibilidade e pode ajudar em certa medida no que respeita ao equilíbrio, nomeadamente para quem tem que se deslocar (sobretudo da periferia para o centro), com o que isso acarreta, e para quem tem que viajar muito, et cetera. Também ajudará algumas vezes em termos de horários, sobretudo a compaginar tarefas profissionais com tarefas familiares e com atividades pessoais.

Sim, tudo isto é verdade, e acontece, e não deve ser escamoteado, sendo que estou convencido de que estas são as principais razões que levam muitos ao encantamento com o teletrabalho, seja para si mesmos seja para os outros. Mas há um reverso, ou vários, e são grandes.

E levam precisamente ao efeito contrário ao pretendido, porque o teletrabalho pode não favorecer a vida pessoal nem familiar, na medida em que não diferencia e não separa as áreas, nem os tempos, nem os espaços. Tudo se pode misturar, e tudo se pode contaminar, exceto com uma quase impossível disciplina pessoal e corporativa. Por outro lado, favorece ainda mais a “perseguição” pelo trabalho, que é exponenciada pelo digital que já nos domina e dominará cada vez mais.

Não fora o mau gosto da piada (que levaria certamente a um cancelamento), e seria caso para dizer que o teletrabalho não liberta assim tanto, ou não liberta mesmo nada. E estou em crer que as gerações que mais a querem, sobretudo por causa da chamada balanced life, serão as mais afetadas por ele. Nessa dimensão, e nas outras três (profissional, social e política) – mas isso é matéria que tem que ficar para daqui a duas semanas. (Continua.)

As armadilhas do teletrabalho – I


O teletrabalho pode não favorecer a vida pessoal nem familiar, na medida em que não diferencia e não separa as áreas, nem os tempos, nem os espaços. 


Em tempos de encantamento com o teletrabalho, em regime completo ou parcial (num registo híbrido, como agora se diz), arrisco-me, porventura, e muito mal comparado, a que me chamem o que em tempos César Monteiro chamou a Manoel de Oliveira: um fóssil.

Na verdade, não é coisa que me encante, e embora perceba as vantagens que tem (que são algumas, mas não são muitas), vejo desvantagens e perigos, e não gosto do que vejo; nem de algum encantamento que, avessos como tendemos a ser hoje ao pensamento complexo, fica pela rama e pela rapidez sedutoras e não para, escuta e olha q.b.

Tem vantagens, naturalmente, seja no que toca à flexibilidade pessoal e profissional, seja no que toca ao ambiente (sobretudo em matéria de deslocações / viagens), seja no que toca a custos; et cetera. E tem, como medida de recurso, como se viu na pandemia, a grande vantagem de permitir que tudo vá mais ou menos andando em tempos de exceção.

Mas acabam aqui as vantagens, e a palavra exceção quadra bem com a viragem do foco para as desvantagens, os problemas e os perigos, porque se pode tender agora a caminhar para tornar regra ou quase regra o que, por definição, deveria ser exceção ou pelo menos residual ou circunscrito a certas áreas e a algumas situações. Sendo também certo que me atrevo a dizer que algumas pessoas que, entusiasmadas e de boa-fé, reclamam para si o teletrabalho (completo ou em hibridismo) podem não ter medido bem as implicações. Vejamos a coisa, em quatro grandes tópicos, que sintetizam a minha opinião (seguindo aliás outras, que me parecem avisadas).

Primeiro, o tema pessoal. O teletrabalho favorece a flexibilidade e pode ajudar em certa medida no que respeita ao equilíbrio, nomeadamente para quem tem que se deslocar (sobretudo da periferia para o centro), com o que isso acarreta, e para quem tem que viajar muito, et cetera. Também ajudará algumas vezes em termos de horários, sobretudo a compaginar tarefas profissionais com tarefas familiares e com atividades pessoais.

Sim, tudo isto é verdade, e acontece, e não deve ser escamoteado, sendo que estou convencido de que estas são as principais razões que levam muitos ao encantamento com o teletrabalho, seja para si mesmos seja para os outros. Mas há um reverso, ou vários, e são grandes.

E levam precisamente ao efeito contrário ao pretendido, porque o teletrabalho pode não favorecer a vida pessoal nem familiar, na medida em que não diferencia e não separa as áreas, nem os tempos, nem os espaços. Tudo se pode misturar, e tudo se pode contaminar, exceto com uma quase impossível disciplina pessoal e corporativa. Por outro lado, favorece ainda mais a “perseguição” pelo trabalho, que é exponenciada pelo digital que já nos domina e dominará cada vez mais.

Não fora o mau gosto da piada (que levaria certamente a um cancelamento), e seria caso para dizer que o teletrabalho não liberta assim tanto, ou não liberta mesmo nada. E estou em crer que as gerações que mais a querem, sobretudo por causa da chamada balanced life, serão as mais afetadas por ele. Nessa dimensão, e nas outras três (profissional, social e política) – mas isso é matéria que tem que ficar para daqui a duas semanas. (Continua.)