Jorge Silva Melo. Um encenador no plano do Olimpo

Jorge Silva Melo. Um encenador no plano do Olimpo


Passava muito tempo em silêncio e permitia que os seus atores se explorassem sem medo do “erro”. Dizia ser aquilo que via, ouvia, aquilo que lhe disseram e aquilo que cumpria ou não. Jorge Silva Melo foi encenador, ator, cineasta, dramaturgo, tradutor e crítico. Morreu na noite de segunda-feira no Hospital da Luz.


Desde ontem que o sentimento no meio cultural é de “vazio” e “luto”. Se há premissas quase irrefutáveis, esta talvez seja uma delas: houve um teatro antes e depois de Jorge Silva Melo. O encenador, ator, cineasta, dramaturgo, tradutor e crítico português tinha 73 anos quando faleceu na segunda-feira no Hospital da Luz, em Lisboa, com cancro. Mesmo assim, parece que o espetáculo “nunca irá acabar”. Porquê? “Eu sou aquilo que vejo, aquilo que oiço, aquilo que me disseram e que eu cumpri ou não cumpri”, dizia Jorge Silva Melo numa entrevista ao i em 2016.

A verdade é que estudou, viveu, liderou, viajou, criou, conheceu e marcou como poucos. Conhecido como um “grande intelectual”, um realizador e encenador do “Olimpo”, precocemente apaixonado pelo cinema e pelas artes, Jorge Silva Melo foi um dos pais do teatro contemporâneo português. Fundou o Teatro da Cornucópia em 1972 e em 1995 a companhia Artistas Unidos, de que era diretor artístico. Preparava-se para estrear, no próximo dia 23, uma encenação de Vida de Artistas, de Noël Coward, que deveria ficar até 10 de Abril no Teatro Municipal São Luiz. 

De “bispo” a realizador Nascido em Lisboa a 7 de Agosto de 1948, passou a infância em Angola, na então Silva Porto, atualmente Kuito. Filho de uma professora primária com origens algarvias e de um antigo funcionário dos Correios, natural do Minho – que mais tarde viria a montar um negócio em Lisboa –, Jorge Silva Melo teve desde cedo contacto com livros e cinema. Antes de entrar para a escola primária, contou diversas vezes em entrevistas, já havia aprendido a ler, graças à ajuda da sua mãe e da irmã, 12 anos mais velha.

Esteve também, graças à última, muito precocemente perto de intelectuais como o poeta Pedro Tamen ou o professor e crítico de cinema João Bénard da Costa, que frequentavam a casa da família. De braço dado com a “sede de conhecimento” e os convívios que também “o iam construindo”, depressa se interessou por literatura, música e cinema.

Contudo, em pequeno ambicionava ser bispo, por influência de um vizinho “engraçado” da família, em Angola. “O meu pai, que era ateu republicano, ia discutir com o bispo. Eu, com três ou quatro anos, adorava aquelas discussões entre o cientista e o religioso. Uma vez fui ver uma missa e achei aquilo tão bonito, tanta gente, tanta festa, e fiquei atraído por aquele lado imponente e festivo. E como o senhor gostava muito de cães e era muito simpático, eu declarei que queria ser bispo”, contava na mesma entrevista.

Foi depois de ver o seu primeiro filme, aos quatro anos de idade, que mudou de ideias: “Era A Zaragateira, de Luigi Zampa, com a Anna Magnani. Foi nesse filme que eu perguntei ao meu pai: ‘Quem é que faz estas coisas?’. Ele disse-me que era um realizador e eu decidi que já não queria ser bispo, preferia ser realizador”, lembrou. Depois de chegar a Lisboa, já adolescente, frequentou “todos os cinemas possíveis e imaginários”.

“O São Jorge, o Tivoli e todos os cinemas mais ‘rascas’ possível, em que descobria os filmes antigos. Com oito, nove anos queria ver os filmes de que me tinham falado”, explicou, acrescentando que aprendeu “a geografia de Lisboa também pelos cinemas”. Nessa altura, revelou ainda, o seu pai comprava todos os dias o Diário de Notícias e o Diário de Lisboa.

Jorge via as páginas de cinemas “com muita atenção”, e muito cedo começou a organizar ele próprio as idas ao cinema dos seus pais: “‘Este filme parece que é bom!’, dizia eu. E eles lá acreditavam e íamos ao domingo ver os filmes”, adiantou. Entre os 14 e 15 anos, já escrevia sobre a sétima arte para o suplemento Juvenil do Diário de Lisboa, então dirigido por Mário Castrim, e em 1967, com 18 anos, já assinava na revista O Tempo e o Modo, a convite de Bénard da Costa.

A “descoberta” do teatro Frequentou a licenciatura em Filologia Românica na Faculdade de Letras, “vindo de dois anos extraordinários no Liceu Camões”, onde teve como professores Mário Dionísio, João Bénard da Costa e Fernando Belo, “que nessa altura ainda era padre e deixou de ser”, facto que o deslumbrou, já que não é todos os dias que “temos um professor que está em dúvida”: “Ele não nos contava as suas dúvidas, mas era engraçado ter um professor que está em mudança”, recordou ao i.

Tinha como colegas João Lobo Antunes, António Reis, Luís Miguel Cintra, António Guterres, entre muitos outros que faziam com que o liceu fosse considerado um “espaço de elite”. Já a universidade abriu-lhe “as portas” para o teatro. Aí nasceria o Grupo de Teatro da Faculdade de Letras, dinamizado juntamente com Luís Miguel Cintra, com quem viria mais tarde a criar a Cornucópia. A primeira peça feita mais “seriamente” no contexto universitário foi O Anfitrião, baseada na comédia de Plauto, no final dos anos 1960.

Oito anos depois, Jorge Siva Melo – então já muito politizado, também por influência familiar – viria a ser preso pela PIDE, no dia internacional de luta pelo Vietname. “Era um dia em que o Américo Tomás regressava de uma visita às colónias, as manifestações tinham aqui um duplo sentido evidente. Fui preso e estive três semanas”, explicou ao i, lembrando também que nessa altura lhe raparam o cabelo como “sinal de humilhação”.

O contacto com o estrangeiro Com 21 anos, pouco depois da manifestação e de ter feito o seu primeiro espetáculo, mudou-se para Londres, tendo ido estudar para a London Film School graças a uma bolsa concedida pela Gulbenkian. “A minha vontade era ir para Paris, mas as escolas lá ainda estavam em convulsão [devido à revolta estudantil do maio de 68], e achei que não me iam dar uma bolsa para ir para lá. Ninguém me ia dar uma bolsa para aquela corja de revolucionários idiotas já transformados em maoistas. A Gulbenkian iria dar-me isso apenas para Londres”, elucidou.

Na escola, recordou, estavam sempre “todos charrados” e eram todos milionários: “Era uma escola privada com muitos ricos e americanos que queriam estudar cinema”, apontou. “Eu não andava a fumar charros porque queria ser intelectual. Vi os Pink Floyd. Ver os Pink Floyd sem droga foi uma experiência única. Devo ter sido o único humano que fez isso. A minha ideia em Londres foi aproveitar para trazer o máximo de conhecimentos para cá. Para colmatar aquilo que eu achava que aqui estava muito atrasado”, admitiu.

Ao voltar para Lisboa, dedicou-se ao teatro. Em 1973, criou e começou a dirigir o Teatro da Cornucópia com Luís Miguel Cintra. Aí permaneceu até 1979, altura em que decidiu ir “beber” aos “grandes mestres”: Peter Stein (de quem foi assistente) na companhia germânica Schaubühne, em Berlim, e Giorgio Strehler no Piccolo Teatro/Scala de Milão. 

Foi na década de 80 que acabou por se afirmar realmente como realizador. Contudo, ainda antes do 25 de Abril, Jorge Silva Melo, já havia trabalhado como assistente de realização ou diretor de produção de filmes de João César Monteiro, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos ou Alberto Seixas Santos, com quem colaborou em Brandos Costumes, em 1975. Primeiro com a cooperativa Grupo Zero e depois em nome próprio, foi o responsável por alguns filmes de grande importância na história do cinema português do pós-25 de Abril, como Passagem ou A Meio Caminho, em 1980, Ninguém Duas Vezes, em 1985, Agosto, dois anos depois, ou Coitado do Jorge, em 1993.

A marca que deixa no teatro Em 1995, motivado pela “vontade de trabalhar autores contemporâneos com atores de gerações posteriores à sua”, criou o famoso grupo de teatro Artistas Unidos. Numa entrevista ao blogue Vidas e Obras, o encenador explicou que percebeu “que havia um sítio que o teatro português não ocupava”: “Estavam a fazer muitos clássicos, a fazer Shakespeare, Molière, Almeida Garrett, mas ignoravam que havia teatro a ser feito por rapazes e raparigas da nossa idade ou mais novos”, notou. A companhia estreou-se a 18 de Setembro desse ano com António, Um Rapaz de Lisboa, considerado um ponto de viragem para o teatro português.

Desde esse momento, a vida do artista passou a direcionar-se mais para esta arte, com apresentações em inúmeras salas por todo o país e sempre atento aos autores internacionais que “resgatou” e “revelou” nos palcos nacionais, tais como Pirandello, Pasolini, Tarantino, Harold Pinter, Pau Miró, Jon Fosse, Enda Walsh, Juan Mayorga, Dimítris Dimitriádis, entre muitos outros.

Além de crítico, cineasta e encenador, Jorge Silva Melo foi também tradutor. Ao longo da sua carreira, traduziu dramaturgos como Carlo Goldoni, Georg Büchner, Oscar Wilde, Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Jean Genet, Pasolini, Heiner Müller ou Harold Pinter. Da sua autoria, deixa cerca de uma dezena de peças de teatro, o libreto de Le Château des Carpathes, de Philippe Hersant (baseado no romance de Júlio Verne), e dois livros, Século Passado, de 2007, no qual compõe o retrato de toda a sua geração, e A Mesa Está Posta, em 2019, centrado na sua paixão pelo teatro.

Jorge Silva Melo trabalhou enquanto a doença o permitiu. Em 2016, ao Observador, já dizia que ainda não tinha acabado o que tinha para fazer: “Inventar um teatro que seja amigo das pessoas, não um teatro de espetáculo — de espavento — mas um teatro companheiro do espetador!”, defendeu, criticando também o “panorama cultural atual”.

“Sei que o teatro que me interessa não está a ser muito feito em Lisboa. Passou-se à conferência e não ao drama. O drama, ou seja, a apresentação de vários pontos de vista numa peça, foi substituído pela proclamação de verdades. E isso aborrece-me. Não gosto de ver verdades, gosto de ver pessoas com opiniões diferentes e desejos diferentes. Isso é o que me interessa no desenrolar de uma peça. Estar a ver conferências, por mais poéticas que sejam… que chatice”, frisou. 

Em 2004 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade. Em 2020, a Cinemateca Portuguesa exibiu uma retrospetiva de toda a sua obra, acompanhada da exibição de um ciclo de 20 filmes escolhidos por si. No ano passado recebeu ainda o grau de doutor honoris causa, pela Universidade de Lisboa. 

O amigo por trás do profissional “Conheci o Jorge no palco do Teatro D.Maria II quando estávamos a ensaiar O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams”, recorda Pedro Caeiro, um dos atores da companhia Artistas Unidos e um dos protagonistas do espetáculo que esteve em cena no ano passado, Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, ao i. “A Eunice Muñoz apresentou-nos e tivemos uma curta conversa. Seguia o trabalho dele desde que andava na escola de teatro”, continua. “O que acontecia nos Artistas Unidos era mágico”, considera.

“Os atores que lá representavam, a descoberta de autores contemporâneos, as revistas, os livrinhos… Trabalhámos juntos pela primeira vez na Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, um espetáculo que me tocou muito e que vamos apresentar novamente este ano no Teatro D. Maria II. Vamos ainda apresentar mais dois espetáculos dele este ano, Obstrução de Dimitris Dimitriadis no Teatro da Politécnica e Vida de Artistas de Noel Coward no Teatro São Luiz. Este último ainda em ensaios e onde o Jorge esteve connosco até ao fim. Estes espetáculos são para ti amigo Jorge”, remata.

“Deixava-nos procurar ao ritmo de cada um” André Loubet, outro dos atores membros da companhia, lembra o momento em que começou a trabalhar com o encenador: “Comecei a trabalhar com o Jorge em 2017 e fui sendo chamado regularmente a integrar o elenco das suas encenações”, afirma ao i, sublinhando que “no meio teatral português – por uma questão de sobrevivência num setor tão precário, a produção exige-se industrial – normalmente não há grande espaço para desperdiçar oportunidades”. “Temos que estar preparados, atropelarmos o nosso próprio tempo. Com o Jorge isso não acontecia. Olhava de fora e deixava-nos procurar ao ritmo de cada um com absoluta confiança no trabalho de cada um de nós”, revela.

“Encontrar as palavras para o vazio que se imprime é obrigar-me a um lugar que o Jorge não impunha. É reviver a angústia de um final de ensaio em que saio sem respostas sobre como fazer e, antes, havia o dia a seguir para fazer melhor com alguém que, de fora, sabia que assim seria”, admite. A par do seu legado incontestável na cultura em Portugal, lamenta, “fica a saudade de um amigo que dedicou a sua vida ao teatro em Portugal e, com isso, criou dinâmicas internas no trabalho que se manifestavam como dinâmicas familiares, com a intensidade relacional a elas inerentes”. “Continuar a reagir por aproximação, umas vezes, e afastamento, outras, ao seu legado é o que podemos fazer para o honrar”, acredita Loubet.

“Um avô e um camarada” “Além de tudo o que nos ensinou sobre teatro e cinema, tantas histórias, o Jorge foi nosso amigo e grande impulsionador do percurso da companhia Os Possessos. Para mim foi um avô e um camarada, de quem tenho já muitas saudades”, acrescenta o ator João Pedro Mamede, membro da companhia desde 2012.

“Mais do que triste é verdadeiramente angustiante ver desaparecer estas figuras maiores do panorama teatral, não apenas pela falta que nos fazem mas pelo vazio que nos deixam, impossível de preencher. Os fazedores de teatro sabem da importância destas referências, destas luzes do palco e da vida, que nos habituamos a seguir, considerar e respeitar sem reservas”, lamentou Mário Primo, encenador na companhia de teatro GATO SA, sedeada em Vila Nova de Santo-André, cidade no litoral alentejano que durante 18 anos acolheu companhias não só nacionais como internacionais na Mostra Internacional de Teatro de Santo-André.

“Não fui amigo próximo do Jorge Silva Melo mas conversávamos frequentemente e há um recado que ficou por dar: ‘Queria tanto receber-te cá em baixo, conversar de viva voz, ou por outra, ouvir-te falar de teatro ou do que quer que fosse, mas já não vai dar… Passaste ao plano da imortalidade e nós ficamos todos mais pobres e sós’”, revelou ao i.