Mundo fechado

Mundo fechado


Os pais desvalorizam-no, em especial o progenitor, que o trata como um falhado. Mas Zaqueu é habitado por um génio, é um poeta que escreve como ninguém.


Abrir um livro de André Diniz é saber de antemão que entraremos num universo pessoal servido por um poder de observação agudo, uma forte empatia e atenção ao outro, atributo dos grandes ficcionistas. Autor realista, do melhor realismo, aberto a todas as aventuras interiores que o ser humano comporta, André Diniz aparece-nos neste particular como um lídimo herdeiro do extraordinário Machado de Assis (1839-1908).

Matei o Meu Pai e Foi Estranho é o título peculiar da obra de hoje. Depois de Morro na Favela, Entre Cegos e Invisíveis e A Revolta da Vacina, esta é quarta vez que nos debruçamos sobre um livro deste autor brasileiro (Rio de Janeiro, 1975), residente em Portugal, com cuja BD tem estabelecido contacto e que homenageia num extratexto final. Nele reconhecemos um recriador de mundos, como é o mundo particular de Zaqueu.

Menino especial com génio de artista e algumas dificuldades relacionais, em casa e também com as raparigas. O seu confidente é um sem-abrigo na floresta de cimento, São Paulo. É, além disso, é um rapaz que sofre de albinismo, no seio de uma família de gente escura, da classe trabalhadora: pai motorista, mãe guarda prisional e ainda dois irmãos, o mais velho, rufia que se entretém a moer o juízo de Zaqueu – criador de alcunhas de calibre, de leite coalhado a esperma de cavalo, passando por branco de neve, Michael Jackson e hepatite c –, e ainda a irmã caçula, Tonha, o seu ai-jesus, a única com quem se entende plenamente, embora tente estabelecer vínculos mais estreitos, especialmente com os pais. Estes, contudo, desvalorizam-no, em especial o progenitor, um impreparado que o trata como um falhado. Mas Zaqueu é habitado por um génio, é um poeta que escreve como ninguém, impressionando a professora – característica inusitada e suficiente para que o patrão do pai pague os estudos num colégio, frequentado por gente rica, e no qual o rapaz se sente também deslocado. Ambiente opressivo e cinzento, em que tudo parece piorar, quando numa deambulação sem destino pela grande cidade, o míúdo topa com o pai e outra mulher, levando uma criança consigo – uma outra família, um irmão que desconhece. O desenrolar da narrativa será surpreendente.

Uma história de todos os dias num meio habitado por milhões, mas em que cada um tem direito à sua própria personagem. Em Matei o Meu Pai e Foi Estranho a interdependência de desenho e texto é ágil e flui, um exemplo seguro de como a 9.ª arte é uma forma de expressão artística singular. E André Diniz, desenhador único e narrador nato, um artista completo.

BDTECA

ABECEDÁRIO 
E, de Esther (Riad Sattouf, 2015). Inspirada numa menina de carne e osso, Esther A., filha de amigos do autor, esta criaturinha de Riad Sattouf é cheia de personalidade, sonhos fantasias e questionamentos, que partilha com as amigas da escola e com a família: pai professor de ginástica, mãe bancária, irmão adolescente e avó. Em curso de publicação, iremos acompanhá-la no seu crescimento até aos 18 anos.
 
LIVROS
Malcolm McLaren – L’Art du Désastre, de Emmanuel Leduc. McLaren (1943-2010), o homem por detrás dos Sex Pistols, com a namorada, a estilista Vivienne Westwood, ambos estiveram no centro de uma revolução estética, musical, social e política, um sismo de curta duração mas de efeitos duradouros, atingindo em cheio o consulado da Dama de Ferro, Margareth Tatcher, bête noire, que lhes sobrevive (Futuropolis).

Mickey et les Mille Pat, de Jean-Luc Cornette e Thierry Martin. A editora de Grenoble, além de criteriosas edições de grandes autores clássico da BD Disney, de Floyd Gottefredson a Don Rosa, passando pelo italiano Romano Scarpa, desafia também autores europeus, alguns dos quais temos assinalado aqui. Desta vez, Jean-Luc Cornette e Thierry Martin situam Mickey, Minnie. Pluto e Pateta numa floresta medieval, com magos, tesouros e o terrível João Bafo-de-Onça, em quatro histórias curtas.