Endurance. O resgate “impossível” do navio que resistiu

Endurance. O resgate “impossível” do navio que resistiu


Passaram mais de 100 anos desde que o navio Endurance, a cargo do explorador britânico Ernest Shackleton, foi engolido no mar congelado de Weddell. Agora, o passado é “trazido à tona”: o navio foi encontrado no dia do centésimo aniversário do funeral do seu capitão.


Esta já era uma das histórias de naufrágios mais emocionantes da história da humanidade: a ambição de atravessar a Antártida “de mar a mar” passando pelo Polo Sul, o percalço do navio ficar atracado no gelo, o afundamento do barco, uma fuga em barcos salva-vidas, 497 dias no gelo com temperaturas assustadoramente negativas, uma sobrevivência às custas de comer focas e pinguins, um resgate surpreendente e todas as 27 vidas dos tripulantes salvas. Mesmo conhecendo a história, uma das interrogações que saltam ao pensamento é como foi possível que os 27 homens que embarcaram no conhecido Endurance – em português Resistência – tenham sobrevivido. Mas agora, 107 anos depois, o passado foi “resgatado”, o paradeiro do navio identificado (depois de mais de uma década de buscas) e, por isso, a pergunta altera-se para: como é possível a embarcação estar em tão bom estado de preservação?

É necessário “viajar” até 1915 para compreender esta história que fez o navio Endurance entrar para a lista de naufrágios mais mediáticos da história do mundo depois de ser “engolido” pelo gelo no mar de Weddell, naquela que foi a primeira Expedição Transantártica da história e do currículo do explorador britânico Ernest Shackleton. Os destroços do veleiro de três mastros que submergiu em novembro desse ano enquanto Shackleton tentava atravessar a Antártida com a sua tripulação de 27 homens foram encontrados no último sábado – dia do centésimo aniversário do funeral do “capitão” – a cerca de três mil metros de profundidade, por uma equipa de investigadores.

A expedição No início de fevereiro deste ano, uma expedição chamada Endurance22 e organizada pelo Falklands Maritime Heritage Trust – instituição de caridade registada no Reino Unido, que se dedica a preservar a história marítima das Malvinas e daqueles que lhes estão associados – que envolveu cerca de 100 pessoas, partiu da Cidade do Cabo, África do Sul, com o objetivo de encontrar os restos do navio. Graças a tecnologia de ponta (como veículos submarinos equipados com scanners de alta definição e um navio quebra-gelo sul-africano, de seu nome Agulhas II​ conseguiu que a ambição fosse cumprida. “O nosso objetivo era localizar, inspecionar e filmar o naufrágio, mas também realizar pesquisas científicas significativas e executar um programa de divulgação excecional”, afirmou o administrador Donald Lamont, à BBC. “A descoberta dos destroços do Endurance é uma conquista incrível. Concluímos com sucesso a busca mais difícil do mundo, lutando contra gelo marinho, nevões e temperaturas abaixo d

os 18 graus Celsius negativos. Conseguimos o que muitas pessoas diziam ser impossível”, realçou, por sua vez, John Shears, geógrafo polar e chefe da missão. Já Nico Vincent, o “gerente do projeto” definiu-o como “o projeto subaquático mais complexo já realizado”, além dos vários “recordes mundiais obtidos”: “Tecnologias subaquáticas de última geração foram implementadas para alcançar este resultado com sucesso e gostaria de agradecer, especialmente à equipa subaquática por todo o suporte de engenharia, tanto a bordo do navio quanto durante os meses de planeamento, projeto e testes, que demonstraram não apenas grande empenho, mas também resiliência digna da melhor tradição de exploração polar”, enalteceu.

O estado de preservação do navio Um dos aspetos que surpreenderam os cientistas foi o estado de preservação da embarcação. As imagens registadas pelo veículo submarino autónomo Sabertooths mostram o navio bastante bem preservado, apesar de os mastros estarem “caídos” e de o convés estar “danificado”: “Estamos espantados com a nossa sorte! Sem qualquer exagero, este é o melhor naufrágio que eu já vi! O Endurance está em posição vertical no fundo do mar, quase intacto e num brilhante estado de conservação”, afirmou à Reuters o arqueólogo Mensun Bound, um dos membros da expedição, que apontou ainda o facto de “até dar para se ler o nome do Endurance na popa” e “ver os buracos que os homens de Shackleton fizeram no convés para salvar os mantimentos”.

As várias carcaças de animais encontradas dentro dos destroços, segundo os responsáveis, “não têm contribuído para a sua deterioração”: “Parece que há pouca deterioração da madeira, o que nos leva a inferir que os animais que comem madeira e que encontramos noutras áreas do nosso oceano não se encontram na Antártida, o que não é surpreendente, tendo em conta que é uma região sem florestas”, explicou à BBC a bióloga polar Michelle Taylor, da Universidade de Essex, em Inglaterra. A especialista contou ainda que o Endurance “parece um navio-fantasma”, contudo, “repleto de uma impressionante diversidade de vida marinha em águas profundas, entre ascídias, anémonas, esponjas, ouriços e estrelas-do-mar”.

Já haviam sido feitas outras tentativas para encontrar o navio de quase 44 metros de comprimento, mas até agora ninguém tinha conseguido devido “às condições hostis do mar de Weddell, que se encontra na maior parte das vezes coberto por gelo”. A expedição Endurance22, que custou mais de nove milhões de euros fornecidos por um doador que preferiu manter o anonimato, veio “mudar o rumo da história”. A investigação decorreu sem grandes obstáculos, já que segundo o jornal The New York Times aquelas águas têm estado “ligeiramente menos geladas”. Acredita-se que foi por essa razão que a equipa de investigadores conseguiu realizar a sua pesquisa e permanecer no local em segurança.

O naufrágio e o instinto de sobrevivência O Endurance, que além das velas possuía também um motor a carvão, foi construído na Noruega para cruzeiros turísticos no Ártico e viagens de caça ao urso polar. Shackleton acabou por “recrutá-lo” como o navio da sua Expedição Transantártica Imperial, que após desembarcar na costa do Mar de Weddell, deveria cruzar o continente até o Mar de Ross através do Pólo Sul, que já havia sido conquistado por Roald Amundsen em dezembro de 1911. A embarcação entrou na zona de gelo ao redor do continente “branco” em dezembro de 1914 e navegou 1.600 quilómetros até ficar completamente presa, a cerca de 161 quilómetros do seu destino no início de 1915. O gelo passou mais de dez meses a “engolir” a embarcação e durante cinco deles os 27 homens assistiram ao naufrágio do lado de fora, num acampamento improvisado no gelo.

Quando percebeu que o navio acabaria por se afundar, Shackleton deu ordens para abandoná-lo. Antes de partir, os exploradores ficaram a observar o navio a mergulhar nas águas geladas. “É difícil dizer o que sinto”, anotou o explorador britânico no seu diário. “Para um marinheiro, o seu navio é mais do que uma casa flutuante. Agora rangendo e tremendo, a sua madeira quebra-se, as suas feridas abrem-se e lentamente deixa a vida no início de sua carreira. Estamos sem-teto e perdidos num mar de gelo”. Outro membro da tripulação revelou que os ruídos da pressão do gelo contra o casco “pareciam os gritos de uma criatura viva”. Segundo a BBC, os exploradores contaram ainda, na altura, que pouco antes de afundar, o Endurance recebeu a visita de alguns “espectadores”: um bando de oito pinguins imperadores aproximaram-se do navio preso, “olharam-no intensamente e erguendo a cabeça, emitiram um lamento fantasmagórico”. Na manhã seguinte ao desaparecimento do Endurance, Shackleton mandou “aliviar” a bagagem e deixar uma infinidade de objetos. O próprio líder separou-se de um punhado de moedas de ouro, do seu relógio, das suas escovas de cabelo, de prata e da sua Bíblia. Além disso, a tripulação teve de matar os animais de estimação do navio: vários cães treinador para puxar trenós e uma gata apelidada de Sra. Chippy. 

Durante os 497 dias que passaram no gelo, em busca de salvação, os homens comeram focas e pinguins para sobreviver. Conseguiram depois com três barcos salva-vidas chegar à ilha Elefante, desabitada, ao largo da Península Antártida. A partir daí e a bordo do barco salva-vidas James Caird, o britânico e alguns dos tripulantes percorreram 1300 quilómetros até à ilha da Geórgia do Sul, onde buscaram auxílio numa estação baleeira. Foi em Agosto de 1916 – à quarta tentativa de resgate – que Shackleton conseguiu regressar à ilha Elefante, resgatando os tripulantes que haviam ficado à sua espera. Desde essa altura, o seu nome é destacado como um “nobre exemplo de liderança”.
No mês passado, outro navio, o Endeavour, com o qual o capitão britânico James Cook explorou inúmeros territórios no Pacífico, incluindo a Austrália em 1770, também foi encontrado nas profundezas da costa nordeste dos EUA. 
Em Lisboa, no Museu da Farmácia está em exibição o estojo farmacêutico de emergência usado pelo explorador britânico na sua anterior viagem ao Pólo Sul, entre 1908 e 1909.

De acordo com o Tratado da Antárctida, que se encontra em vigor há 60 anos, os destroços da embarcação Endurance constituem um “monumento histórico”, ou seja, os submarinos não puderam tocar-lhes. Segundo o The New York Times, as imagens que recolheram serão usadas como “base para materiais educativos e exposições” e acredita-se que deverá vir a ser feito um documentário sobre a expedição.