De regresso aos berros das manchetes, como dizia Nelson Rodrigues, esse cronista a quem devemos milhares de citações, parece que já se passou uma eternidade. E passou mesmo. Trinta e seis anos, assim por extenso, tantos morrem antes de cumprirem essa idade, cumprindo a velha lei dos anos-loucos: “Vive depressa, morre cedo, sê um cadáver bonito!” Chernobil, a Usina Nuclear que fica nos arredores de Prypiat (de nome oficial Vladimir Ilyich Lenin), não longe da fronteira entre a Ucrânia e a Bielorrússia, viu o seu reactor nº 4 explodir na madrugada de 26 de Abril de 1986. Calcula-se que as radiações, que transformaram os arredores num local fantasma, terão morto, de imediato ou com o tempo, mais de 15 mil pessoas. E destruído para sempre a saúde de muitas mais. Agora, é a guerra que anda lá perto, sendo que as centrais nucleares da Ucrânia têm sido um alvo do Exército Vermelho na tentativa de paralisar o inimigo.
Falar de futebol na Ucrânia, mesmo em tempo de um conflito macabro e insano como este, não é crime. Se há um ano havia mundo para lá do covid, hoje continua a haver mundo para lá da guerra que conseguiu calar todas as notícias sobre o covid. O fanatismo noticioso, mesmo que a notícia não seja notícia, tomou definitivamente conta da sociedade. Toda a gente fala e debita opiniões sobre a Ucrânia e muitos dos verborreicos não sabem sequer onde fica a Ucrânia e muito menos o básico da sua História, um território onde o homem pôs o pé há mais de 30 mil anos, e onde, na verdade, nasceu aquilo a que chamamos de Rússia.
Pripyat não é um cadáver bonito. É uma cidade fantasma onde podemos ir ver aquilo que poderia ter sido, desde que nos aprovem uma licença especial para a visita, permitindo ultrapassar os check-points das estradas interditas. Fundada em 1970 para servir de bairro habitacional para os trabalhadores da usina, foi evacuada após o incidente e, entretanto, as árvores e o mato tomaram conta dos prédios, dos edifícios municipais, dos parques públicos. Imagem impressiva do abandono.
Construtores Nesse mundo de desolação, não deixa de ser irónico que o clube de futebol que em tempos existiu em Pripyat se chamasse Stroitel Football Club Pripyat, já que stroitel, em ucraniano, significa construtor. O Estádio de Avangard é outro escombro. As bétulas cresceram onde outrora havia um relvado, o silêncio tomou conta do lugar onde antes se ouviam gritos de incentivo.
Se algo distinguia o Stroitel era o facto de a grande maioria dos seus jogadores não ser propriamente de Pripyat mas sim de uma pequena vila dos arredores, Chystohalivka, o que lhe atribuía uma aura familiar capaz de atrair simpatias. Nunca foi um clube de grandes ambições, jogando nos campeonatos regionais ucranianos (nesse tempo ainda República Soviética da Ucrânia), tendo sido por três vezes consecutivas campeão da Kyiv Oblast, ou região de Kiev (1981,1982 e 1983), algo que lhe permitiu aceder às primeiras eliminatórias do antigo campeonato amador da Ucrânia, que reunia os campeões regionais, motivo de extremo orgulho para um clube tão pequeno.
Voltemos ao dia 26 de Abril de 1986. Tudo indicava que seria um grande dia para o Stroitel Pripyat. Iria defrontar o FC Systema-Boreks Borodianka, o clube da fábrica de equipamentos de escavação de Borodianka, para as meias-finais da Taça do Kiev Oblast. Esperavam-se mais de dez mil pessoas no novíssimo Avangard e, em caso de vitória, a festa seria bem regada a vodca.
Bem cedo na manhã do jogo, os helicópteros começaram a aterrar no relvado. Inspectores em fardas completas e capacetes, parecendo astronautas, iam desembarcando deles carregando detectores radioactivos. Os sinais sonoros dos contadores Geiger começaram a disparar a torto e a direito. Os jogadores do Stroitel foram avisados de que o jogo não se realizaria, que deveriam recolher a suas casas o mais urgentemente possível e esperar pelas horas vindouras da evacuação da cidade.
À 1h23 dessa madrugada, o reactor n.º 4 tinha explodido. Depois do audível enorme estrondo, focos de incêndio foram-se espalhando, exigindo a entrada em serviço dos bombeiros e outras forças de emergência. Já não era a primeira vez que acontecia um acidente em Chernobil, mas nunca se vira nada como isto. As pessoas saíam para a rua, em pijama, fitando desorientadas as colunas de fogo no meio da escuridão. Não foi apenas a vida que parou, nesse dia, em Pripyat. O futebol desapareceu.