Estive em Kiev no inferno mais frio e no mais pleno verão. Sei que rebentam bombas em redor da velha capital da Rússia, o que faz com que esta guerra esteja de pernas para o ar: seriam, por via da História, os ucranianos a exigir a retoma dos seus territórios a Leste e não os russos a reclamarem o seu passado no Oeste, a menos que fosse para devolver a Kiev o estatuto da capital dos rus, termo usado para denominar descendentes de viquingues que ocupavam aquela parte do planeta.
Enquanto contemplo as águas do Sado a contrariar a corrente por via da maré que enche, desde lá do fundo, de Troia e do Portinho da Arrábida, vem-me à memória uma velha canção dos Barclay James Harvest que tinha um nome curto e aguçado: Kiev, precisamente. “Eye to eye our ways are not the same/We never tried to understand/But it could pass to each of us you name/Then who’s the one to take the blame”. Pois, a culpa, sempre a culpa. O reator nuclear nº. 4 da Usina de Chernobyl, perto da cidade de Pripiat, conseguiu matar, nos anos que se seguiram cerca de 15 mil pessoas. Só teve de fazer bum! A contaminação radioativa tratou do morticínio. Estávamos em Abril de 1986. Para alguns era o momento do armagedom, a batalha final entre as forças do bem e do mal, segundo as Escrituras. O nome é esquisito, mas tem origem simples: vem do hebraico, har meggido, o Monte do Megido, nos arredores da Nazaré, de Israel, onde também já estive e me apavorei com a feiura das igrejas modernas que disfarçam os lugares sagrados onde nada existe a não ser muares e oliveiras. Por sinal também havia na nossa adolescência uma banda escocesa chamada Nazareth, o que demonstra que toda a Terra é simplesmente uma bolinha de vidro, daquelas que se sacode e desata a cair neve, ou caspa, não sei ao certo. Pelo evoluir da Humanidade, cada vez mais suja e descuidada, é caspa com certeza. Os Barclay, que eram ingleses, cantavam: “Kiev, a candle with a flame/You’ll never be the same/We all will understand/You’re really not to blame/They’ve thrown away your past/Just like an empty glass/Into the fire Kiev”. Tinham razão. Continuam a jogar fora o nosso passado como um copo vazio em direção ao fogo. E o cheiro que fica é o da morte.