Marilyn Stafford. Um arquivo guardado debaixo da cama

Marilyn Stafford. Um arquivo guardado debaixo da cama


Marilyn Stafford esteve esquecida durante quase toda a vida. Agora o Brighton Museum & Art Gallery, em Inglaterra, fê-la tirar o seu arquivo debaixo da cama e limpar o pó a fotografias que marcam o século passado.


Perguntamo-nos como é que o seu nome não ecoa mais vezes na imprensa, ou por que razão o universo da fotografia não insiste na genialidade do seu trabalho. A verdade é que, aos 96 anos, Marilyn Stafford continua a acreditar que aquilo que fez ao longo da vida não é arte: “Eu era uma fotógrafa de profissão. Era uma maneira maravilhosa e deliciosa de ganhar a vida. Só tive sorte!”, explicou numa entrevista ao The Guardian. Fotografou líderes mundiais, personalidades como Albert Einstein ou Edith Piaf, de quem foi amiga. Levou modelos para as ruas, fotografou zonas de guerra e fez amizade com famoso fotógrafo francês Cartier-Bresson. Depois? Deixou os seus trabalhos debaixo da cama durante décadas, onde ficaram esquecidos. Até agora. A obra de Stafford acaba de ser “resgatada” com a exposição Marilyn Stafford: A Life in Photography, que se encontra em exibição no Brighton Museum & Art Gallery até 8 de maio. Além disso, um livro com o mesmo título foi publicado pela Bluecoat Press, como se não existisse “pó” nas câmaras, ou como se as imagens tivessem estado sempre “vivas” de alguma maneira.

Stafford documentou silenciosamente grande parte do século XX, mas a sua carreira nunca tinha sido celebrada como hoje. A fotógrafa chegou a admitir ter-se esquecido das “relíquias” que abandonou debaixo da cama depois de se reformar aos 50 anos. Ao jornal britânico, revelou agora que nem está a acreditar no que está a acontecer.

Teve as suas “primeiras revelações do que era a realidade” quando perguntou à mãe, durante uma caminhada, o porquê de uma menina que seguia à sua frente não ter sapatos. Aos 96 anos, com os lábios marcados de vermelho (a combinar com os seus óculos) e um cabelo branco como a neve, o Guardian descreve-a como “baixinha, glamorosa, séria e muito divertida”. O que separa a menina da nonagenária? Uma longa carreira carregada de viagens e “cliques” que captaram aquilo que os seus olhos viram e o seu coração sentiu. A fotógrafa tem dentro de si histórias que carregam histórias.

Do Teatro à Fotografia Nascida em 1925 em Cleveland, Ohio (EUA), Stafford cresceu numa família de classe média. O seu pai era um farmacêutico que emigrou do Báltico quando jovem e a sua mãe era dona de “uma grande beleza”, e sonhava ser uma verdadeira “dama”. Ao The Guardian, a fotógrafa contou que a sua mãe viveu até os 103 anos, acabando por morrer “de vaidade”. “Era tão vaidosa que não usava o aparelho auditivo e dizia: ‘Quando eu não puder ver e ouvir mais, vou-me matar’. Quando isso efetivamente aconteceu, ela deixou de comer”, recordou. Os seus pais desejavam que Marylin se tornasse a próxima Shirley Temple – atriz, dançarina, cantora e diplomata norte-americana – mas a menina não apreciava dormir todos os dias de rolos no cabelo. Apesar disso, gostava de representar. Entre os 10 e os 18 anos colaborou com a Cleveland Play House, ao lado do ator e realizador norte-americano Paul Newman e do ator, cantor e dançarino americano Joel Grey. Lá aprendeu o método Stanislavski. “Acho que provavelmente sou a única fotógrafa de Stanislavski por aí. Ou era!”, comentou.

Acabou, por isso, por estudar teatro na universidade enquanto trabalhava numa fábrica de defesa local para conseguir pagar os estudos. Em Nova Iorque, fez algumas participações especiais em produções off-Broadway. Contudo, tinha dificuldades enquanto atriz e, em 1948 foi desafiada por dois amigos que estavam a realizar um documentário sobre Albert Einstein na sua casa em Princeton, Nova Jersey, para fotografá-lo. “Foi quando ganhei a minha primeira câmara 35mm. Nunca a tinha usado antes! Estava apavorada! Fico entorpecida em momentos desses. Tudo o que sabia era que tinha de focar e clicar no botão”, lembrou ao jornal britânico. Nas fotografias, o físico está a sorrir, “amassado, curioso e humano”. Stafford quer acreditar que, numa delas, o sorriso no rosto do físico se destinava a ela própria. 

A vida em Paris Aos 23 anos a jovem fotógrafa partiu para Paris e conseguiu um emprego no bar Chez Carrère, onde cantava com um prestigiado grupo (aparentemente o único estabelecimento que a recém-casada princesa Isabel tinha permissão para frequentar).

Nessa altura, Marylin fez amizade com o cantor Eddie Constantine, que namorava Edith Piaf, e começou a ser frequentadora do lar do casal, onde tomava o pequeno almoço muitas vezes. Uma das fotografias patentes no livro que acompanha a exposição capta Piaf vestida de branco e sorrindo: “O oposto daquilo que estávamos habituados a ver”, explicou a autora da imagem. 

Quando não estava no bar, durante o dia, apanhava o autocarro até aos bairros de lata de Boulogne-Billancourt e fotograva os seus habitantes. Segundo o The Guardian, algumas fotos são “de partir o coração”: uma sem abrigo a dormir no carrinho de uma criança, crianças atrevidas que se metem com a câmara. 
Por ser “tecnicamente inepta”, como afirma, Stafford evitava estúdios e levava os seus modelos para as ruas. Numa das fotografias, uma modelo está do lado de fora do Louvre “mergulhada” num longo casaco branco, com um guarda chuva numa das mãos, sapatos de salto alto na outra e os pés “abertos” calçados com umas grandes botas, quase como se fosse uma fusão de Marilyn Monroe e Charlie Chaplin.

Ainda na capital francesa, fez amizade com os fotógrafos e co-fundadores da Magnum Robert Capa, David “Chim” Seymour e Henri Cartier-Bresson, pelo qual a fotógrafa tinha uma adoração. Interrogada sobre aquilo que aprendeu com o mestre, Stafford respondeu “a quietude”: “A não ser óbvia como fotógrafa. Ele fotografa sem que ninguém se apercebesse. Lembro-me de estar sentada num café e de ele ter uma câmara no colo. Viu qualquer coisa que o interessou, levantou-a rapidamente e tirou a fotografia”, recordou.
 
As fotografias mais difíceis da sua carreira Em 1956, Stafford casou-se com um correspondente estrangeiro e acabou por correr mundo. Em Itália, tirou uma foto memorável de Francesca Serio, uma trabalhadora e ativista que se tornou a primeira pessoa a processar a máfia siciliana. Numa das fotografias captadas por Stafford, o rosto de Serio brilha num fundo mais negro; numa outra, o seu olhar é “duro”.

Quando estava grávida de seis meses, viajou para a Tunísia para fotografar pessoas em campos de refugiados que fugiram da política da “terra queimada” da França na Argélia. Atualmente, ao olhar para essas fotografias, pensa nos refugiados da Ucrânia: “Sinto-me doente e triste o tempo todo. Isto parte o meu coração”, admitiu ao The Guardian. Nesse conjunto de fotografias, destaca-se uma de uma mãe com o seu filho. Esta segura o seu bebé com ternura, mas o seu olhar não ali está. Cartier-Bresson acabou por enviar esse conjunto de imagens para o Observer, onde foram publicadas na primeira página, o que levou o próprio jornal a enviar um repórter para cobrir a história dos refugiados. Nesse momento, Stafford começou a sentir que as suas fotos “poderiam servir um propósito”.

Ao longo de 1960, fotografou a vida quotidiana no Líbano, mas as fotos que eram para ser publicadas num livro acabaram por ficar guardadas durante 30 anos: a editora responsável considerou que “havia muita coragem e pouco glamour”. Acabou por se divorciar enquanto a sua filha ainda era pequena e optou por viajar até Londres.

Através do seu trabalho comercial – dirigiu uma agência de moda com o fotógrafo francês Michel Arnaud – teve a oportunidade de acompanhar durante um mês a primeira-ministra Indira Gandhi numa viagem à Índia. Em 1972, regressou ao Bangladeche com a intenção de tirar retratos de algumas das estimadas mais de 200 mil mulheres e meninas abusadas sexualmente por soldados paquistaneses na guerra de libertação. Essas imagens nunca mais lhe saíram da cabeça: “Os olhos das pessoas que conheci estavam cheios de terror. Fotografei imensos rostos e olhos, mas simplesmente não consegui capturá-los”, lembrou. “No Bangladeche foi a primeira vez que vi os estragos da guerra em primeira mão e isso marcou-me terrivelmente porque eu era realmente inocente. Uma coisa é ler sobre a guerra e ver as fotografias de outra pessoa, outra é estar lá”, refletiu. A experiência foi transformadora. Quando regressou a Londres, ofereceram-lhe um emprego a tempo integral numa revista de moda e recusou: “Não queria passar a minha vida a tirar fotos de moda quando havia muito mais a acontecer no mundo”. 

Stafford reformou-se aos 50 e vinte anos depois casou-se com um português que havia sido antifascista durante o Estado Novo. Mudaram-se para Sussex, onde ela acabou por se dedicar à organização de encontros de poesia e festivais literários. Depois da morte do marido, dedicou-se a explorar as coisas que tem debaixo da cama e a arrumar todo o seu arquivo.