O recente reviver da guerra fria, com episódios regionais e agudos de guerra quente, fluxos de refugiados na Europa como não se via desde o início (e o fim) da segunda guerra mundial e uma clara sensação de que o pior está para vir, trouxeram de volta ferramentas negociais já quase esquecidas. A guerra fria teve cultores notáveis e legiões de estudiosos que, de um lado e do outro da barricada, se dedicavam a tentar conhecer o “inimigo”, antecipando os seus movimentos e fornecendo material narrativo capaz de o influenciar, quer ao nível dos decisores, quer ao nível das populações. No momento presente há razões para presumir a morte dos sovietólogos e a insuficiência (excepto nos canais de televisão portugueses), em quantidade e qualidade, dos putinólogos.
O Direito Internacional Público também desempenhou um papel importante na guerra fria, desde logo no afinar da mecânica da Carta da ONU. A uma leitura formal da separação de poderes entre os diversos órgãos sucedeu uma interpretação mais adequada à realidade. A suposta quarentena da Assembleia Geral nas situações em que o Conselho de Segurança estiver a exercer competências em sede de capítulo VI (solução pacífica de controvérsias) ou VII (acção em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de agressão) foi interpretada como permitindo uma intervenção da AG sempre que o CS se revele inoperacional. A inoperacionalidade resulta, naturalmente, do exercício do direito de veto por um dos 5 membros permanentes do CS. A primeira vez em que a “inoperacionalidade” do CS foi declarada, em 3 de Novembro de 1950, em plena guerra da Coreia, a maioria do CS considerou que a constatação da inoperacionalidade pelo exercício do direito de veto (na prática ausência física do delegado da URSS, em protesto pelo não reconhecimento pelos EUA da China de Mao) se traduzia numa questão de procedimento podendo ser decidida por uma maioria de 9 membros, sem possibilidade de veto (nº 2 do artigo 27 da Carta) e convocou a AG. A resolução “Unidos para a paz” (377-A) da AG, aprovada com 52 votos, 5 contra e 2 abstenções, passou a permitir a convocação da AG em sessões especiais de emergência para discutir as matérias em que o CS não deliberou. À época o delegado russo não deixou de constatar o entorse interpretativo: “There was no use in the veto if a majority could always be commanded”.
A história vingou-o. A resolução 377-A, face ao repetir dos vetos pelos membros permanentes do CS, deu origem a várias sessões especiais de emergência da AG: Suez (1956), revolta húngara (1956), Líbano e Jordânia (1958), Congo (1960), Médio Oriente (1967), Bangladesh (1972), Afeganistão (1980), Palestina (1980, 1982), Namíbia (1981), Territórios árabes ocupados (1982).
Esta semana a Ucrânia, por via da resolução A_ES-11_L-1 da AG, integrou o catálogo da 377-A , contando com 141 votos a favor, 5 contra (Bielorússia, Coreia do Norte, Eritreia, Rússia e Síria) e 35 abstenções (destaco: Argélia, Angola, República Centro Africana, China, Cuba, Índia, Irão, Iraque, Cazaquistão, Quirguistão, Moçambique, Namíbia, Nicarágua, Paquistão, África do Sul, Sri Lanka, os dois Sudões, Vietname e Zimbabué).
Impõem-se duas constatações. O isolamento da Rússia em 2022 é menor do que foi o da URSS em 1950. A linguagem da resolução, mesmo que venha a ser repetida em futuras resoluções votadas por uma maioria semelhante, é suave. A AG “deplora” a agressão, não a condena.
Próximos capítulos: Tribunal Internacional de Justiça, já na terça-feira e Tribunal Penal Internacional, com uma acusação a breve trecho.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990