“Arrependidos” e futurologia


A chamada “lei anticorrupção” altera sete diplomas, e pelo menos em quatro deles introduz várias e significativas alterações e novidades em matéria de colaboração (aliás em geral bem, a meu ver). Mas, insisto, ainda não vi celebração adequada.


Há em Portugal um certo discurso (no sentido de narrativa, análise e/ou opinião) que costuma apontar três causas principais para os invocados (que são realmente muito mais vozes do que nozes) “graves problemas” do sistema de justiça. Discurso esse que, tendo quase sempre os mesmos autores imediatos (e desconfio que também os mediatos, quando os há – e por vezes há), por um lado centra-se em “problemas” cuja identificação assenta na realidade noticiosa de uma vintena de processos, os mediáticos (que são na maioria megaprocessos), e por outro lado costuma separar o mundo da justiça em “bons” e “maus”, sendo “os bons” normalmente parte do Ministério Público, a Polícia Judiciária e não mais do que meia dúzia de magistrados judiciais, sendo o resto tudo mau ou, na melhor das hipóteses, neutro. Este discurso, em minha opinião, tem pouca adesão à realidade, é muitas vezes maniqueísta, faz simplificações ou generalizações empobrecedoras e perigosas, não trata dos verdadeiros problemas do sistema, ficando por uma espécie de roteiro pela rama, e é amiúde engagé. Ora, essas três causas, espécie de trindade santíssima dos males do mundo da justiça, são: a falta de meios, o excesso de garantias e a falta de um regime de colaboração – um “regime de arrependidos”, costumando alguns autores desta narrativa lacrimejar de nostalgia pelo regime italiano dos pentiti que fez escola nos anos de chumbo italianos e depois.

Falemos hoje e aqui deste último tema, começando por dizer, primeiro, que não é exatamente verdade que não houvesse já entre nós algumas normas sobre os chamados “arrependidos” e, segundo e principalmente, que ainda não vi (salvo distração minha) celebração cabal para a avalancha de normas que a recente Lei n.º 94/2021, que entrará em vigor neste mês de março, traz nessa matéria. A chamada “lei anticorrupção” altera sete diplomas, e pelo menos em quatro deles introduz várias e significativas alterações e novidades em matéria de colaboração (aliás em geral bem, a meu ver). Mas, insisto, ainda não vi celebração adequada. Dir-me-ão que há que dar tempo ao tempo. Talvez, concedo, embora a experiência me diga que para tais discursos nunca nada chega e nunca nada está bem (exceto a conduta dos “bons” da fita). Veja-se o caso das garantias, que têm sido na última década e meia mais desmatadas do que a Amazónia, seja no processo penal seja no processo contraordenacional, e nunca é suficiente, é sempre pouco, há sempre que cortar e queimar mais; até porventura chegarmos ao dia em que não restará nada, o dia (que não será inteiro e limpo) em que os próprios cultores de tal discurso darão por si num campo ermo e árido.

Agora temos aconchego para os pentiti, e em várias modalidades e com várias consequências, da dispensa da pena (em várias velocidades) à atenuação especial. É verdade que faltaram os acordos de sentença, que estavam na Estratégia mas caíram na Lei, e sobre isso também ainda não vi lamento que baste (sendo que eu lamento, note-se). Mas, mesmo faltando isso, há muito regime, existe bastante para estudar, para aplicar, para experimentar. E sempre estou para ver se, daqui a uns anos, no habitual discurso do “está tudo mal” e “as causas são estas, e são simplicíssimas”, ainda se chorará pela iluminação italiana dos anos 70 do século passado. Ou então se se arranjará, em mais um registo à vol d’oiseau, e tapando o sol com a peneira (com boas e com más intenções – porque as duas existem, valha a verdade), outra causa qualquer para juntar às outras duas do costume, uma terceira causa que se junte à gritaria da míngua de meios e da abundância de garantias, e que encha o olho mas não explique, realmente, o essencial das coisas e das suas causas. Cá estarei para ver e ouvir, assim haja vida e, não menos importante, memória.

Escreve quinzenalmente sexta-feira

“Arrependidos” e futurologia


A chamada “lei anticorrupção” altera sete diplomas, e pelo menos em quatro deles introduz várias e significativas alterações e novidades em matéria de colaboração (aliás em geral bem, a meu ver). Mas, insisto, ainda não vi celebração adequada.


Há em Portugal um certo discurso (no sentido de narrativa, análise e/ou opinião) que costuma apontar três causas principais para os invocados (que são realmente muito mais vozes do que nozes) “graves problemas” do sistema de justiça. Discurso esse que, tendo quase sempre os mesmos autores imediatos (e desconfio que também os mediatos, quando os há – e por vezes há), por um lado centra-se em “problemas” cuja identificação assenta na realidade noticiosa de uma vintena de processos, os mediáticos (que são na maioria megaprocessos), e por outro lado costuma separar o mundo da justiça em “bons” e “maus”, sendo “os bons” normalmente parte do Ministério Público, a Polícia Judiciária e não mais do que meia dúzia de magistrados judiciais, sendo o resto tudo mau ou, na melhor das hipóteses, neutro. Este discurso, em minha opinião, tem pouca adesão à realidade, é muitas vezes maniqueísta, faz simplificações ou generalizações empobrecedoras e perigosas, não trata dos verdadeiros problemas do sistema, ficando por uma espécie de roteiro pela rama, e é amiúde engagé. Ora, essas três causas, espécie de trindade santíssima dos males do mundo da justiça, são: a falta de meios, o excesso de garantias e a falta de um regime de colaboração – um “regime de arrependidos”, costumando alguns autores desta narrativa lacrimejar de nostalgia pelo regime italiano dos pentiti que fez escola nos anos de chumbo italianos e depois.

Falemos hoje e aqui deste último tema, começando por dizer, primeiro, que não é exatamente verdade que não houvesse já entre nós algumas normas sobre os chamados “arrependidos” e, segundo e principalmente, que ainda não vi (salvo distração minha) celebração cabal para a avalancha de normas que a recente Lei n.º 94/2021, que entrará em vigor neste mês de março, traz nessa matéria. A chamada “lei anticorrupção” altera sete diplomas, e pelo menos em quatro deles introduz várias e significativas alterações e novidades em matéria de colaboração (aliás em geral bem, a meu ver). Mas, insisto, ainda não vi celebração adequada. Dir-me-ão que há que dar tempo ao tempo. Talvez, concedo, embora a experiência me diga que para tais discursos nunca nada chega e nunca nada está bem (exceto a conduta dos “bons” da fita). Veja-se o caso das garantias, que têm sido na última década e meia mais desmatadas do que a Amazónia, seja no processo penal seja no processo contraordenacional, e nunca é suficiente, é sempre pouco, há sempre que cortar e queimar mais; até porventura chegarmos ao dia em que não restará nada, o dia (que não será inteiro e limpo) em que os próprios cultores de tal discurso darão por si num campo ermo e árido.

Agora temos aconchego para os pentiti, e em várias modalidades e com várias consequências, da dispensa da pena (em várias velocidades) à atenuação especial. É verdade que faltaram os acordos de sentença, que estavam na Estratégia mas caíram na Lei, e sobre isso também ainda não vi lamento que baste (sendo que eu lamento, note-se). Mas, mesmo faltando isso, há muito regime, existe bastante para estudar, para aplicar, para experimentar. E sempre estou para ver se, daqui a uns anos, no habitual discurso do “está tudo mal” e “as causas são estas, e são simplicíssimas”, ainda se chorará pela iluminação italiana dos anos 70 do século passado. Ou então se se arranjará, em mais um registo à vol d’oiseau, e tapando o sol com a peneira (com boas e com más intenções – porque as duas existem, valha a verdade), outra causa qualquer para juntar às outras duas do costume, uma terceira causa que se junte à gritaria da míngua de meios e da abundância de garantias, e que encha o olho mas não explique, realmente, o essencial das coisas e das suas causas. Cá estarei para ver e ouvir, assim haja vida e, não menos importante, memória.

Escreve quinzenalmente sexta-feira