Dmytro Gumenyuk e o risco nuclear na guerra. “Danos apenas num reator seriam semelhantes a Fukushima ou Chernobil”

Dmytro Gumenyuk e o risco nuclear na guerra. “Danos apenas num reator seriam semelhantes a Fukushima ou Chernobil”


Perito em segurança nuclear de Kiev diz que russos ignoram o perigo. Em Enerhodar, um ataque direto à central de Zaporizhzhia, com seis reactores, poderia deixar metade da Europa radioativa. “Precisamos de armar os céus ucranianos”, defende ao i Dmytro Gumenyuk. 


Dmytro Gumenyuk é responsável pelo departamento de análise de segurança do SSTC NRS, centro estatal ucraniano para a segurança nuclear e radioativa, com 15 reatores nucleares usados na produção de eletricidade no país. Ao telefone de Vyshneve, nos subúrbios da capital ucraniana, diz que o que estão a viver é inimaginável no século XXI e uma ameaça muito para lá do território ucraniano: “Um ataque contra um país com infraestruturas nucleares é muito perigoso não apenas para Ucrânia mas para a Europa e para todo o mundo”.

O que nos pode descrever destes últimos dias? Está em Kiev?

Estou muito perto de Kiev. Vivo a menos de três quilómetros de Kiev, na cidade de Vyshneve. A última noite (madrugada de segunda-feira) e o dia de hoje foram mais calmos, não ouvimos tantas explosões e helicópteros. A noite anterior foi terrível. As tropas russas atacaram em Vyshhorod, houve incêndios e ataques a depósitos de combustível. No sábado de manhã vimos o míssil russo que atingiu um prédio que fica a cerca de 6 quilómetros da minha casa. Vi a cauda do míssil no céu.

Outro míssil foi atingido pelas nossas defesas antiaéreas e também o vimos. Não imaginávamos que uma situação destas fosse possível no século XXI. É uma guerra estúpida, não compreendemos porquê. Tornou-se algo louco. Putin ou Hitler nazi é para nós o mesmo.

Tem vindo a alertar para o risco nuclear deste conflito. Há sinais de danos em algum dos 15 reatores nucleares na Ucrânia?

É um tema muito sensível. Como diz, temos 15 reatores nucleares operacionais na Ucrânia e ainda um reator de investigação, além da zona de Chernobil. Um ataque contra um país com infraestruturas nucleares é muito perigoso não apenas para Ucrânia mas para a Europa e para todo o mundo. Um conjunto de combustível de um reator contém cerca de meia tonelada de dióxido de urânio. Num reator por exemplo há 163 conjuntos de combustíveis e só num reator pode haver 6 toneladas de combustível radioativo. Temos 15 reatores na Ucrânia, estando a maior parte do combustível nos núcleos. Danos na armadura destes núcleos pode libertar muitos produtos radioativos na ambiente.

Na central de Zaporizhzhia, na cidade de Enerhodar, a informação que temos é de que está cercada por tanques e militares russos e que estas pessoas vão atacar a central. Há seis unidades nesta central, são toneladas de combustível radioativo. Danos numa unidade seriam semelhantes ao acidente de Chernobil ou Fukushima. Danos nas seis unidades seria sinónimo de morte para a Europa. É muito perigoso mas estas pessoas estúpidas, os nossos vizinhos do Norte, vão atacar Zaporizhzhia.

Mas têm informação aí de que pode haver um ataque diretamente central?

Há algumas horas o meu colega de Enerhodar mostrou um vídeo de tanques a avançar para lá e as pessoas estão prontas para lutar. Não sei o que vão fazer mas acho que ninguém do lado russo percebe o perigo que está ali. Atingindo ou não atingindo a central, trata-se de porem armamento pesado, tanques russos e máquinas de guerra, perto de Enerhodar onde há seis reatores nucleares.

Qual é o sentimento na STTC? O que se pode fazer numa situação destas para evitar danos maiores?

O que podemos fazer para proteger centrais nucleares? Só pôr lá o exército e o exército ucraniano está a fazer o melhor para prevenir qualquer danos nas centrais. 

Na semana passada dizia que mais do que um ataque direto, receava que as centrais fossem atingidas acidentalmente. Está mais preocupado agora? 

Na semana passada disse que não conseguia imaginar um ataque direto a uma central nuclear e via mais uma situação em que pudessem ser atingidas acidentalmente por um míssil. Agora vi e ouvi situações da atuação militar russa e sabemos que estão perto de Zaporizhzhia. Não sei o que querem, se é atacar ou não. Ocuparam a zona de exclusão de Chernobil e o armazenamento de combustível e o que vemos é que depois de chegarem os níveis de radiação na região aumentaram sem ter havido nenhum dano no casco.

Depois disto, a informação que temos é de que simularam um combate aéreo em cima do armazenamento de combustível. O que querem não sei. Não posso fazer projeções. Posso fazer projeções sobre pessoas normais, sobre pessoas loucas não sou especialista em problemas psiquiátricos. Sou especialista em nuclear.

Já disse que pensa que os russos não sabem que o perigo que está ali. Mas pensa que existe consciência disso de um modo mais alargado?

Penso que as tropas russas não sabem. São soldados muito novos, com 17, 18, 19 anos. Os europeus, sobretudo os especialistas em nuclear, sim. Falei com colegas alemães, da agência nuclear, e as pessoas estão muito impressionadas e percebem as consequências caso haja danos nem que seja num reator. Já nem falo dos seis. Danos em apenas um reator seriam catastróficos não apenas para a Ucrânia mas para os países vizinhos.

Dependendo das condições meteorológicas, pode ser catastrófico para Leste ou para Oeste, Suécia, América, por aí fora. Seria uma situação pior que Fukushima. Se falarmos de contaminação terrestre em que a radiação passa para águas, pode chegar ao Mar Negro, daí para o Mediterrâneo, para o Atlântico. As consequências seriam dramáticas num cenário extremo.

Por quanto tempo?

Penso que a atividade em caso de danos de um reator seria semelhante a Fukushima. Num ou mais, poderia ser pior que Chernobil e Fukushima juntos. No caso de danos em seis unidades, a zona de exclusão seria de metade da Europa.

Metade da Europa ficaria radioativa?

Correto. Estou a falar do pior cenário. O que quis notar nas minhas primeiras intervenções é que as nossas unidades não foram desenhadas para ataques militares, foram desenhadas para resistir a eventos externos como tornados, sismos, inundações. O reator está dentro de uma armadura de contenção com betão armado que pode resistir a uma pressão interna de 5 bar e uma temperatura de 150º graus.

Conseguirão resistir a agressões de pequenos aviões com menos de 10 toneladas. Mas penso que o calor de mísseis e artilharia pode danificá-los. Penso que um míssil único não o faria, teria de ser um ataque direto a uma central. O nosso exército está a fazer o melhor para manter os reatores, a Ucrânia e o povo europeu a salvo.

Tem sido dito que o facto de as centrais nucleares ucranianas serem antigas as pode tornar mais vulnerável. Há um maior risco por isso?

As nossas centrais nucleares foram construídas há 30 anos mas toda a infraestrutura, reatores e construções de betão, estão em boas condições. Estamos permanentemente a fiscalizar e posso confirmar-lhe que as condições das centrais ucranianas não são piores do que as das centrais europeias. Mais: acho que as centrais da Ucrânia são das mais seguras da Europa.

Tiveram Chernobil.

Sim, sobrevivemos a Chernobil e implementámos medidas para melhorar a segurança. Implementámos geradores a diesel, uma série de medidas adicionais. Em caso de lockdown de toda a rede elétrica, as nossas centrais funcionariam, como estão a funcionar. A questão é que não são centrais para guerra, são centrais para paz.

Tem memórias do acidente de Chernobil?

Tinha 10 anos. Não vivia perto, mas lembro-me de ver as roupas das pessoas que chegaram à minha pequena cidade, que construiu uma série de prédios para os desalojados de Chernobil. Era muito novo e não compreendia o quão terrível era aquela situação, mas questionava-me sobre o que era radiação, porque é que a água era verde e muitas pessoas à nossa volta não sabiam responder até porque não havia muita clarificação, porque foi tudo silenciado. Lembro-me de ouvir falar das manifestações cinco dias depois do acidente. Estive muitas vezes na cidade de Pripyat e continua a ser terrível ver os edifícios abandonados, escolas, é muito duro. 

Durante o fim de semana Putin pôs o armamento nuclear em alerta. Um cenário de terror ainda maior para um povo com a memória de um acidente nuclear. Acredita que seria capaz de o usar?

Como já disse, sou bom a prever situações de pessoas normais, não sou especialista em psiquiatria. Pessoas normais não dão orientações para a implementação de armamento nuclear. Não consigo prever nada. O exército de Putin não tem tido progressos na Ucrânia, os planos não foram implementados. O exército não está a ganhar em Kiev e a pequena Ucrânia sobrevive à grande, em território, Rússia. Penso que o argumento nuclear pode colocar-se no caso de Putin não ter sucesso. 

Estão a seguir esta ameaça no SSTC?

O armamento nuclear não é da competência do SSTC. Trabalhamos com segurança nuclear em tempo de paz e não de guerra. Há 30 anos a Ucrânia recusou a armamento nuclear e neste momento não temos uma organização específica que trate desta questão, temos trabalho em centrais nucleares mas não para isto.

Li um artigo que falava de um certo ressentimento por parte de alguns ucranianos pelo abandono do arsenal nuclear. Partilha deste sentimento?

Não, os ucranianos não lamentam ter abandonado o nuclear. Somos uma nação pacífica. Não temos nenhuma mágoa e não temos nenhum plano para o desenvolvimento de armamento nuclear. Não precisamos disso na Ucrânia, já temos outros problemas.

O que podem fazer os países para precaver esta ameaça? Vê questões como a distribuição de pastilhas de iodo a fazerem algum sentido?

Pastilhas de iodo não vão resolver o problema. O melhor a fazer é apoiar o exército ucraniano. Precisamos de armar os céus ucranianos. Vladimir Putin durante quatro dias bombardeou cidades ucranianas, lançou rockets da Rússia e Bielorrússia, precisamos de selar o céu por exemplo como Israel e de apoio dos estados membros da NATO para tornar o céu seguro contra os aviões e mísseis de Putin. Isto é o que podemos fazer. Apoiar o povo ucraniano e exército. Esta guerra não é uma guerra da Rússia contra a Ucrânia, é uma guerra contra a Europa. Depois da Ucrânia, será outro país. Polónia, Lituânia, etc.

A Rússia tem alegadamente mais de 6 mil ogivas nucleares, os EUA mais de 3 mil. É armamento nuclear que chegaria para destruir o planeta. Como é que o vê um especialista em segurança nuclear?

É inimaginável. Este número de armas é suficiente para destruir o mundo várias vezes. No que toca aos EUA, não me assusta porque não acredito que as lançassem primeiro. Agora a Rússia, neste momento, não sei. 
Um analista de Moscovo admitia que uma opção para a Rússia seria lançar uma bomba nuclear no Mar do Norte.

Não sou especialista. Há três ou quatro anos, a Rússia testou armamento nuclear nesse local e houve um aumento da radiação em cima da Ucrânia. E isto já tinha sido perigoso.

Teve amigos a deixar o país nos últimos dias?

Alguns amigos deixaram Kiev, não conheço ninguém que tenha saído. Quem pode defender a Ucrânia, entre 18 e 60 anos, tem de ficar. É o nosso país, a nossa terra mãe.

O Presidente ucraniano está a ser reconhecido internacionalmente como um protagonista firme, uma surpresa no Ocidente. Como vê a atuação de Zelensky?

Falando honestamente, é uma surpresa para nós também. Não votei em Zelensky nas presidenciais mas o seu comportamento deixa-nos orgulhosos – orgulhoso do Presidente, do povo ucraniano e da Ucrânia. Tem dado bom exemplo a todo o povo ucraniano de como se lida com uma situação destas. Estou orgulhoso e, como disse, não votei nele.

A maior central nuclear europeia

Zaporizhzhia Informações contraditórias chegaram ontem de Enerhodar, onde fica localizada a maior central nuclear europeia, a central de Zaporizhzhia. Foi relatado que a Rússia tinha tomado o controlo da central, algo negado pelas autoridades ucranianas. Nas redes sociais, circularam imagens de civis a construir barricadas nas estradas com pneus, sacos de areia e barras de metal para impedir o avanço de tropas, mas houve também relato de bombardeamento aéreo.

A região é palco da investida russa depois de Moscovo ter reclamado Melitopol, o que aumenta o risco de uma escalada de tensão poder atingir instalações críticas. Ontem a agência nuclear belga advertiu contra a toma de pastilhas de iodo, que bloqueiam a absorção de radiação na tiroide, sem indicação, por acarretarem também riscos.