Maria Filomena Molder. A leitora incomum

Maria Filomena Molder. A leitora incomum


Em 2015, centenas de pessoas foram à Culturgest ouvir uma filósofa falar sobre o Eclesiastes. Agora essas conferências começam a ser reunidas em livro.


Em Março de 2015, Maria Filomena Molder deu um conjunto de conferências na Culturgest cujo objecto, Qohélet ou Ecclesiastes, como é conhecido, espanta – nem que seja porque não se espera este corpo a corpo que dura, nesta versão impressa, mais de duzentas páginas. E o espanto dobra-se para quem se lembrar do auditório cheio e das pessoas que tiveram que assistir às conferências através de meios audiovisuais em salas improvisadas. Em 2015, em Portugal, centenas de pessoas foram à Culturgest ouvir um filósofo (uma filósofa, neste caso) falar sobre o Qohélet: parece um daqueles acontecimentos de outro tempo e de outros lugares, talvez se consiga explicar um pouco através do estranho fenómeno de popularidade de Maria Filomena Molder; em todo o caso, permanece sempre um caso anómalo dentro de um país sem tradição filosófica de relevo.

O que encontramos nestas mais de duzentas páginas é um exercício – cheio de dispersão, como devia ser sempre o caso –, em que Maria Filomena Molder acompanha passo a passo esse estranho texto da tradição judaica. É a atenção, desmedida, metódica, exorbitante, de uma leitora incomum e intempestiva, que vai pesando e sopesando todos os momentos do Qohélet, que vai tentando, de todas as formas, medir a respiração do texto. Não lhe devolve qualquer forma de sistematicidade, não usa de uma técnica bastante usada pelos filósofos que consiste em ouvir no texto do outro apenas aquilo que lá se quer colocar (o caso mais flagrante são as leituras fraudulentas que o filósofo nazi Heidegger fez de Hölderlin); limita-se a devolver, como leitora incomum, toda a estranheza que este texto contém, toda a tensão, uma estranha musicalidade que trabalha a partir da repetição, deste livro sapiencial sem qualquer réstia de moralismo. É bastante interessante que se reclame apenas dessa atenção à palavra do outro (a atenção é a oração natural da alma, como diria o filósofo Malebranche), como se nestas figuras “menores” (o leitor, o tradutor, por exemplo) estivesse contido uma subtil força messiânica que, neste caso, consiste em manter um corpo a corpo com um dos mais complexos e contraditórios textos da tradição judaica.

Maria Filomena Molder não sabe o suficiente de hebraico para conseguir ter acesso ao original. No entanto, esta insuficiência acaba por servir para colocar em destaque toda a atenção como forma de pensamento que esta filósofa coloca ao serviço da palavra. Usa várias traduções, mas aquelas que elege como privilegiadas são a tradução que Haroldo de Campos faz do Ecclesiastes e as duas do poeta, dramaturgo e tradutor italiano Guido Ceronetti. Passo a passo, verso a verso, vai medindo, comparando, as diferenças e as igualdades que existem na versão de Ceronetti e de Haroldo Campos, vendo as clivagens, retirando consequências, dando-nos a ouvir os “acordes dissonantes” deste poema sapiencial que, como afirma Haroldo de Campos, lembra um “fragmento insurrecto, imbricando anacronicamente no cânone bíblico”. 

Sem esquecer as dívidas para com outros pensadores, sem as tentar esconder (Ceronetti, Campos, mas acima de tudo o pensador Giorgio Colli), Maria Filomena Molder lê – e isso, que parece fácil, é tarefa difícil, como se pode ver nestas mais de duzentas páginas de leitura persistente:

“Ceronetti ensinou-me a ver que Qohélet não nos consola, dele não se pode tirar uma moral repousante que atribua sentido à vida, o que não deve ser confundido com Deus, porque Deus é uma evidência, o sentido da vida não. Nunca será de mais salientar que esse que ficou conhecido como Qohélet é um crente, sente temor a Deus, aceitando e acentuando, ao mesmo tempo, o abismo entre Deus e os homens; ter consciência de viver é o tormento de Deus no homem, por isso viver é tão incompreensível como Deus.”

É um livro estranho, como afirmou Haroldo de Campos, onde não há salvação possível, onde não há vida depois da morte, onde o sofrimento não pode ser resgatado nem amenizado por uma qualquer promessa que se situe no futuro. É um livro do mortal ao mortal, constantemente a afirmar a passagem, a vacuidade das coisas, esvaziando o além de qualquer promessa ou consolação. 

“Não há qualquer visão messiânica: o dia de ontem escoa-se no dia de hoje e o dia de hoje irá escoar-se no dia de amanhã, hoje esquecemos os que viveram ontem, amanhã seremos esquecidos, nós que vivemos hoje, os que viverem depois de amanhã serão esquecidos pelos que vierem a seguir”

Maria Filomena Molder chama-lhe uma “lucidez feroz” e do seu comentário ressalta toda a inclemência que este texto transporta, o vento gelado, “famélico”, que não nos dá paz alguma.

É por isso que é um estranho livro sapiencial – entramos, afirma Maria Filomena Molder, num “deserto de sede e vento famélico”, vento que “soa áspero, árduo, ameaçador”. Seria de esperar que a sabedoria que se vai acumulando ao longo do tempo desse frutos, permitisse, enfim, que aprendêssemos a viver, que alguém ou algo – um livro, por exemplo – tornasse possível que se fosse ao seu encontro, pedindo-lhe uma qualquer forma de ensinamento. É o carácter económico, chamemos-lhe assim, da sabedoria, que é objeto de acumulação: aquele que vê muito, aquele que vive bastante, está no lugar de transmitir aquilo que viu e ouviu, está no lugar de ensinar – a viver, como se detivesse uma chave qualquer, por mais enigmática que seja. Nada disto acontece com Qohélet – e isto é um ensinamento que se retira do texto de Maria Filomena Molder. A lucidez é demasiado feroz, como afirma, demasiado inclemente para com todos aqueles que vivem, ao ponto de Qohélet preferir o não nascido àquele que nasceu – ao mesmo tempo que nunca, em momento algum, amaldiçoa a vida. 

Será talvez uma incoerência, mas uma incoerência que está no âmago de Qohélet, no âmago da própria vida que é, ao mesmo tempo, “névoa-nada” e cheia de prazeres. É uma afirmação incondicional da vida (da vida terrestre, mortal, na iminência do desaparecimento e do esquecimento, de uma vida que nem sabe o que poderia ser uma vida não mortal), que não pode deixar de ser uma afirmação de tudo quanto esta contém de paradoxal, de incoerente, de errante, que faz vibrar, no mais intenso dos prazeres, essa consciência extrema de que tudo será subjugado ao império da morte, à “névoa-nada”, de que tudo, portanto, é nada – este não lhe confere sentido, mas confere a todo o prazer uma vibração pungente, tensa. O exemplo é de Maria Filomena Molder:

“estamos no campo, vemos uma amendoeira em flor, maravilhamo-nos com o nascer do sol ou com o pôr do sol. Em todas estas situações Qohélet não vê senão fumo, porém, o prazer que se teve com a amendoeira em flor ou com o nascer e o pôr do sol, não é negado”

Talvez se possa dizer, pelo contrário, que só nessa condição é que o prazer é afirmado – “aceitando os dias bons e os dias maus”, no que isso tem de injunção excessiva. 

No entanto, nada há em Qohélet de indiferença, bem pelo contrário. Na leitura que dele faz Maria Filomena Molder, a injunção à justiça é feita partindo exactamente da ideia de que aquilo que espera a vítima e o carrasco é exactamente o mesmo – a “névoa-nada”, a morte que, esvaziado que está o além, não traz consigo justiça alguma. A dor das vítimas da opressão é mais pungente nesta igualdade imposta pela morte, da mesma forma que é “mais insuportável a força brutal que as oprime”. Mas é exactamente porque a força bruta é mais insuportável se não houver promessa de reparação futuro, é exactamente porque a dor das vítimas se torna cada vez mais insuportável se não houver salvação, que a injunção da justiça se dá a ouvir – não num tempo futuro, não numa qualquer promessa, mas agora, no instante em que se faz sentir todo o insuportável da dor da vítima e mesmo que não haja reparação possível, que igualdade alguma se possa estabelecer.

“O maior mal é não vermos os maus serem castigados, pois a justiça que viria depois da morte não diz respeito à terra, é aqui, sob o sol que desejamos a justiça feita. Deixar a justiça por fazer estimula a indiferença, incita o coração a inchar, consequência da consciência de que fazer o mal compensa, de que o desequilíbrio provocado pelo crime sem castigo não será reparado para júbilo daquele que o cometeu”

Esta louca injunção à justiça enlouquece o sábio que vê, que testemunha – porquê e a injunção faz-se desde logo sentir, não pede tempo, nem sensatez, quer cumprir-se no exacto momento em que surge; é consequência da “névoa-nada”.

Mas esta lucidez feroz não se fica por aqui e toda a sua pungência se deixa ver quando Maria Filomena Molder, comentando Qohélet, afirma que Deus é “tão insondável nos dias da alegria como nos da aflição”. Na alegria talvez não seja necessário; mas na dor, no sofrimento, na aflição, Deus ser insondável quer apenas dizer que não está lá, que é insondável ao ponto de cavar ainda mais o abismo e a solidão do sofrimento. 

São duzentas e muitas páginas de um corpo a corpo sem fim com este texto de onde não se retira qualquer ensinamento – cheio de um vento feroz, desértico, carregado desse paradoxo que habita a vida, com tanto prazer e tamanha dor. É um monumento intempestivo, chegado de um outro tempo, uma luta com Qohélet a que hoje poucos se dispõem – e de onde se regressa como se tivéssemos visto muito, mas esse muito que vimos não nos dá qualquer moral, qualquer regra.