Há mais de dez anos, numa visita aos países da ex-Jugoslávia, um amigo contou-me que entre os eslovenos era famosa a anedota em que uma professora pergunta a um menino da escola: – “quem é a tua mãe?”, e ele responde – “a minha mãe é a Jugoslávia”; a professora continua: “quem é o teu pai?”,- “o meu pai é o general Tito”; até que a professora pergunta – “que é que queres ser quando fores grande?”, e o rapaz prontamente responde – "quero ser órfão".
Menciono este relato com propósitos humorísticos, consciente de que a situação da Ucrânia é completamente diferente da história da desintegração jugoslava – e espero que menos trágica -, embora as comparações com o processo de independência do Kosovo sejam inevitáveis na análise, desde logo nos argumentos das autoridades norte-americanas e russas desde a anexação da Crimeia.
Comparações à parte, a anedota eslovena espreitou-me a memória quando ouvi Vladimir Putin afirmar que a Ucrânia “é uma aberração política, histórica e cultural”, negando o direito de existência do próprio país como estado independente. O discurso, que surpreendeu pela violência do nacionalismo e do ressentimento imperialista, suscitou o aplauso da extrema-direita mundial e com isso estará (quase) tudo dito. Ainda assim, gostava de reafirmar alguns aspetos.
Primeiro: o direito internacional. O que está em causa é a soberania de um estado cujas fronteiras foram reconhecidas pelas Nações Unidas. Não há dúvida de que o reconhecimento das regiões separatistas leva ao enterro dos acordos de Minsk, assinados em 2014, segundo os quais a Ucrânia concedia autonomia a Donetsk e Lugansk em troca da recuperação da fronteira leste com a Rússia. Também não é segredo que a Ucrânia não cumpriu a sua parte do acordo.
Segundo: a realidade histórica. Seria ingénuo não reconhecer que os territórios Donetsk e Lugansk já se encontram atualmente sob tutela da Federação Russa, ainda que os limites geográficos dessa tutela não sejam totalmente coincidentes com os das regiões. Esse facto deriva de um processo histórico que não faz corresponder as fronteiras geográficas dos países às divisões culturais, religiosas, políticas ou linguísticas dos seus povos. Aliás, dos cerca de 3 milhões de habitantes destas regiões, 800 mil têm passaporte russo.
Isto é importante para perceber que estes territórios e os seus povos, ao contrário de outros exemplos históricos, nunca tiveram processos de luta pela autodeterminação nacional fora do imperialismo russo. Apesar disso, a Rússia conviveu bem com a situação até pressentir como ameaça uma mudança política em Kiev e a aproximação vertiginosa da NATO.
Terceiro: as palas dos imperialismos. Se entendermos a segurança coletiva “como um regime de segurança universal em que todos os Estados cooperam para assegurar a paz e a segurança internacionais contra os estados que a desafiam pela força”, os EUA só podem ser vistos como um obstáculo a esse bem-estar mundial. A escalada de tensão entre a Ucrânia e a Rússia em muito se deve à insistência da NATO em cercar a Federação Russa com bases e armamento com uma proximidade que os próprios EUA não aceitariam que se instalasse no que entendem ser o “seu quintal”.
Quarto: a submissão da União Europeia à NATO. É um problema para a Ucrânia e é um problema para a Europa. Porque afasta aquele país de um processo de paz que conduza à sua neutralidade perante os dois imperialismos, num modelo próximo daquele que garantiu tranquilidade à Finlândia; e porque arrasta a União Europeia para posições estratégicas desfavoráveis.
Um bom exemplo é a questão energética. Joe Biden não depende do fornecimento de gás natural russo, mas foi o presidente norte-americano quem primeiro anunciou a possibilidade de cancelar a certificação do novo gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha. O fornecimento de energia é um problema dramático capaz de afetar igualmente as economias europeia e russa, o que é por si só evidência de que o assunto não deve ser deixado em mãos alheias através de pretextos mais ou menos salvíficos de uma suposta “civilização ocidental”. Sobretudo quando essas mãos já tantas vezes mancharam as nossas de sangue em guerras injustas e criminosas.
Em vez de ficar a assistir ao embate das potências hegemónicas numa espécie de complexo de Édipo ou de Electra imperial, a União Europeia tem de afirmar o seu próprio caminho nas relações com a Rússia. Esse caminho só pode ser a via diplomática e de negociação da paz (incluindo, sempre que necessário, sanções direcionadas aos oligarcas e aos obscuros interesses russos). A alternativa será a escalada da tensão bélica que envolve a Europa num clima de guerra fria que não controla, alimentando fundamentalismos e milícias armadas de parte a parte.
Deputada do Bloco de Esquerda