Pablo Neruda. O lado sombrio de um dos maiores poetas do mundo

Pablo Neruda. O lado sombrio de um dos maiores poetas do mundo


Neruda confessou há 48 anos que abusou sexualmente de uma mulher e que “renegou” a própria filha. Agora, mesmo depois da sua morte, há quem o repudie e tente “sabotar” as suas homenagens.


“Depois de tudo te amarei/como se fosse sempre antes/como se de tanto esperar/sem que te visse nem chegasses/estivesses eternamente/a respirar perto de mim/Perto de mim com teus hábitos/o teu colorido e tua guitarra/como estão juntos os países/nas lições escolares/e duas comarcas se confundem/e há um rio perto de um rio/e crescem juntos dois vulcões”.

Ao lermos estas palavras do poema ‘Integrações’, será fácil manter a imagem romântica que Pablo Neruda (1904- 1973) nos deixou, já que o poeta-diplomata chileno e político que ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1971, continua a ser, até hoje, um dos maiores nomes da poesia – Neruda ficou conhecido como poeta quando tinha apenas 13 anos, e, durante a sua vida, escreveu numa variedade de estilos, incluindo poemas surrealistas, épicas históricas, manifestos abertamente políticos, uma autobiografia em prosa, e poemas de amor. 

Mas agora, ao que parece, o seu nome surge com “menos luz” do que é habitual. A verdade é que a sua memória já se tem vindo a “abalar” há alguns anos. Contudo, no início deste ano, um incêndio destruiu a casa de infância do poeta em Temuco, no centro do Chile, abrindo caminho para o “desmoronar” da sua imagem. “O local foi completamente destruído pelas chamas”, informou a Rádio Bio-Bio no dia 23 de janeiro, adiantando que parte das chamas também atingiram o seu colégio. De seu nome verdadeiro Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, o poeta viveu na habitação entre 1906 e 1921 e, depois de morrer, a casa foi transformada em museu. 

O repúdio por Neruda O acontecimento surge no meio de um acalorado debate no Chile que tem sofrido grandes mudanças nos últimos anos: no dia 11 de março, Gabriel Boric, líder de esquerda de 36 anos, tornar-se-á no presidente mais jovem do continente. Não é segredo para ninguém que Neruda tinha um grande vínculo com a esquerda, que agora se desvanece, por conta do resgate de algumas das suas confissões no livro de memórias escrito há 48 anos, Confesso que Vivi. Naquela época, praticamente ninguém notou a “crueza” da sua história. Somente nos últimos anos é que a sociedade compreendeu a “gravidade” de alguns dos seus atos.

Neruda é mesmo repudiado em muitos espaços e mentes do Chile e há mais de três anos que o país debate se deve ou não renomear o seu principal aeroporto que tem o nome de Arturo Merino Benítez, fundador da Força Aérea e da companhia aérea nacional. O aeroporto de Santiago passaria a denominar-se Pablo Neruda, mas tudo indica que isso não acontecerá, já que um setor muito poderoso dos movimentos feministas quer “cancelar” o poeta. Porquê?

As “terríveis” confissões Neruda revelou nas memórias publicadas em 1974 que abusou sexualmente “da mais bela mulher que já tinha visto”: “Certa manhã, determinado a fazer tudo, peguei no seu pulso com força e olhei-a nos olhos. Não havia língua em que eu pudesse falar com ela. Deixou-se levar por mim sem um sorriso e, de repente, já estava nua. A cintura fina, os quadris cheios, as protuberâncias dos seios tornavam-na igual às esculturas antigas do sul da Índia. O encontro era o de um homem com uma estátua. Ela permaneceu o tempo todo com os olhos abertos, impassível… Estava certamente a desprezar-me! A experiência não se repetiu!”, lê-se na autobiografia.

Além disso, no livro, dá-se também pela ausência de referências a Malva Marina, a sua filha única. A menina nasceu com hidrocefalia no ano de 1934, em Madrid, e morreu aos cuidados de alguns amigos da sua mãe aos oito anos. Segundo o El Mundo, numa carta enviada à sua amiga argentina Sara Tornú, Neruda é extremamente “rude” ao falar da jovem, filha da holandesa Maria Hagenaar Vogelzang: “A minha filha é um ser perfeitamente ridículo. Uma espécie de ponto e vírgula… Um vampiro de três quilos”.

A defesa dos familiares Rodolfo Reyes, sobrinho do Nobel, afirmou ao jornal espanhol que estes tipos de julgamento de que o seu tio tem sido alvo, mesmo depois de morrer, são “injustos”: O tio Pablo sofria por não poder dar um maior bem-estar à sua filha em plena Segunda Guerra Mundial. Ele enviou recursos para a sua ex-esposa”, defendeu. Reyes acredita ainda que Neruda é questionado, tal como Albert Einstein ou Fiódor Dostoievski, “por fatos ocorridos num contexto vivido há 90 anos”, quando a realidade é que o poeta “sempre admirou, amou e respeitou as mulheres”. Já Darío Oses, escritor e crítico literário, escreveu que “o anti- nerudismo se tornou numa espécie de culto negativo que gera devoções e catecismos”. 

A imagem do poeta parece, por isso, moldada no atual contexto político chileno. Boric quer liderar um governo “profundamente feminista” – se o aeroporto mudar de nome, será para Gabriela Mistral, Prémio Nobel de Literatura, em 1945. Consciente de tudo isso, o sobrinho de Neruda diz concentrar os seus esforços na procura por provas que mostrem que o seu tio não morreu de cancro na próstata, mas foi sim assassinado.

Neruda foi candidato presidencial do Partido Comunista nos anos 1970, derrotado nas primárias por Salvador Allende, o socialista que chegou ao Palácio de La Moneda. “Seria um assassinato 12 dias após o golpe Estado de Pinochet. Estamos a aguardar o relatório final emitido por equipas periciais forenses de grande prestígio internacional. Quando o tivermos, entregaremos a um tribunal”, explicou ainda Reyes.