Governação com Ciência


A ciência é um perigo para quem gosta do “copy e paste” acrítico e uma inspiração para quem procura boas soluções.


As ocorrências em torno da contagem dos votos no Círculo Eleitoral da Europa adiaram a tomada de posse da Assembleia da República e a consequente entrada em funções do XXIII Governo Constitucional. Um governo que, tendo em conta os compromissos assumidos pelo PS e pelo seu líder e indigitado primeiro-ministro António Costa, será mais compacto e focado na recuperação do país.

António Costa tem a legitimidade política e a confiança absoluta dos portugueses para concretizar este objetivo, mas é importante que o tema suscite debate e reflexão. Neste espírito revisitei um projeto de investigação que enquanto Professor Catedrático do Departamento de Gestão da Universidade de Évora orientei naquela Universidade entre 2005 e 2009. Um projeto da doutoranda Arminda Neves, uma mulher com muito pensamento e obra feita na Administração Pública portuguesa e que focou o seu trabalho nos modelos de governação pública em Portugal, cuja história conhecia bem e cujo futuro quis ajudar a projetar.

Aprovada a dissertação final com grande distinção, a então já Professora Doutora Arminda Neves publicou um livro, hoje ainda muito atual, inspirado no seu trabalho científico e intitulado Governação Pública em Rede – Uma aplicação a Portugal (Edições Sílabo – 2010).

E o que nos propõe a autora como conclusão da sua aturada investigação? De forma sintética (recomendo a consulta do livro a quem se interessar a sério pela reforma do modelo de governação em Portugal), propõe um modelo a cinco dimensões (cinco domínios, cinco regiões) em que a base do Governo é estruturada a partir de um responsável central, cinco responsáveis dos domínios chave, designadamente soberania, social, economia, território e conhecimento, a que acrescem as funções naturais dos Negócios Estrangeiros e das Finanças e 30 responsáveis setoriais trabalhando em rede com os responsáveis de domínio. Prevê ainda a existência de coordenadores responsáveis por grandes programas transversais de acordo com as políticas conjunturais prioritárias e de cinco responsáveis por cada uma das Regiões, que coordenam a esse nível a rede de governação e integram o núcleo de governação central.

Se a síntese anterior já é um abuso de simplificação da minha parte, vou ainda mais longe dizendo que na matriz tradicional esta proposta configuraria um Governo com um primeiro-ministro, um ministro dos Negócios Estrangeiros, um ministro das Finanças, um ministro por cada um dos cinco domínios e um Ministro (ou alto comissário a isso equiparado por cada uma das regiões), e ainda 30 Secretários de Estado com coordenações setoriais e integrados nos Ministérios em função do domínio.

2022 não é 2010 e um estudo académico com base científica não pode ser transposto para a sociedade em concreto sem os necessários ajustamentos. Acresce que alguns dos grandes desafios da governação transversal, como a transição energética ou a transição digital ainda não eram tão evidentes na época em que a investigação foi realizada, embora as “canalizações” do modelo possam bem suportar estas dimensões. A ciência é um perigo para quem gosta do “copy e paste” acrítico e uma inspiração para quem procura boas soluções. O caso da governação não é exceção.

 

Eurodeputado do PS