Entre o meio-dia e as duas e meia da tarde, o sol bate-me na varanda como se fosse Verão ainda que nem sequer nos tenhamos visto livres do Inverno e falte um mês para tal. O sol faz-me escrever a eito e a encher páginas de jornais e outras que o meu amigo Baptista Lopes me fará o favor de reunir nos livros de crónicas que, anualmente publico na Âncora. Pode ser, como dizem alguns sábios que conhecem as manigâncias das evoluções do cérebro e da sua tradução para a escrita, que a crónica seja a mais pobre das parentes da literatura. Pouco me importa. Li, ao longo da vida, crónicas que valem por romances inteiros, que fazem sorrir ou surgir uma lágrima no canto do olho, que nos relatam filosofias completas ou que poderiam, se fosse o caso, contribuir para a dissolução de impérios. Lembro-me sempre de António Botto e do seu menino doente, amarrado a uma cama e que, todos os dias, mal lhe abriam pela manhã as janelas do quarto, perguntava ansioso: “Diz-me ama, por favor, ainda há mundo lá fora?”
Há casas que não têm fora, fechadas em si próprias. A minha casa tem sol e rio, e campos de arroz a perder de vista. Eu sei que há mundo lá fora desde o momento em que me levanto, recebo o milagre do calor no rosto, e espalho pelos parapeitos os grãos de arroz que os pardais vêm devorar com chilreios de felicidade. Eu sei que há mundo lá fora porque o escrevo todos os dias, tal como está, à mistura com a vida que fui tendo e caminha inexoravelmente para o fim. Eu sei que há mundo porque não acredito que toda a força deste sol que me faz respirar fundo o cheiro a lodo que brota do Sado não é apenas um truque de um Deus malicioso qualquer que brinca com as nossas sensações como se fôssemos todos meninos doentes amarrados a uma cama num quarto que não tem fora. Por alguma razão, quando perguntaram a Elis Regina o que costumava ler, ela respondeu: “Walt Disney e Sófocles..” Só quem conhece a vida por dentro e por fora diria algo assim.