São muitos os lugares ao redor do mundo que se podem gabar de ter recebido a Rainha de Inglaterra. Contudo, há um que se destaca por ter assistido ao momento que fechou um ciclo e abriu um novo caminho para a história do Reino Unido. De certeza que as próximas gerações continuarão a aprender a história da jovem que subiu a uma “árvore” no Parque Nacional de Aberdare, no Quénia, como princesa e desceu como Rainha. E tudo aconteceu há 70 anos, no dia 6 de fevereiro de 1952. Foi no mítico Treetops Hotel, com vista para aquele que agora se transformou num “bebedouro lamacento”, que a então princesa Isabel recebeu a notícia que o seu pai, o Rei Jorge VI, havia morrido durante o sono, vítima de um cancro que lhe afetava os pulmões.
O mundo assinalou a data redonda, mas nem tudo foi motivo para comemoração: o dia que assinalou o septuagésimo aniversário da coroação da Rainha relembrou também o recente encerramento do famoso hotel queniano em consequência da pandemia da covid-19. Vários quenianos ficaram desempregados da noite para o dia e muitos outros condenam o encerramento de “portas”, defendendo que o governo “deveria ter intervindo mais cedo para garantir que o hotel permanecesse aberto como património nacional”.
Ao Africanews, um habitante de Nairóbi, John Kamata, lembrou que “muitos turistas gostariam de visitar o local onde a monarca mais antiga da Grã-Bretanha passou a sua última noite como princesa”. Já Amos Ndegwa, guia turístico e naturalista, explicou que a pandemia mostrou que manter o espaço a funcionar já “não era sustentável”. Contudo, admitiu que espera que o edifício não caia no esquecimento: “É muito lamentável que estejamos a comemorar 70º aniversário da ascensão da Rainha ao trono, mas ao mesmo tempo termos sido obrigados a fechar negócio. Apelo, portanto, ao governo para que reconsidere a sua posição e invista em todos os locais históricos do Quénia”, pediu Ndegwa.
O hotel na selva que recebeu a Rainha A ideia inicial do “Major” Eric Sherbrooke Walker, dono de terras na Cordilheira Aberdare, era construir uma casa na árvore para sua esposa, Lady Bettie. A ideia acabou por crescer e, em 1932, o casal pôs em prática o seu sonho, construindo uma casa na árvore de duas divisões numa enorme figueira de 300 anos como instalação adjunta do Outspan Hotel, em Nyeri, por eles construído e gerido. Contudo, a construção desta “fase inicial” do hotel foi dificultada pela presença de vida selvagem, já que a árvore onde a casa fora construída bem próxima de um riacho muito procurado pelos animais. Os trabalhadores e seguranças eram frequentemente afugentados pelas feras, o que aumentava todos os custos.
Inicialmente o hotel possuía dois quartos e abria apenas nas noites de quarta-feira. Os hóspedes desfrutavam de um momento numa plataforma onde o céu estrelado, com os sons da noite em “pano de fundo”. Contudo, a crescente procura forçou os Walkers a acomodar mais visitantes. O Treetops foi assim reforçado e sua capacidade aumentada para quatro quartos, incluindo um para um caçador residente. Foi precisamente nessa altura que a herdeira do trono de Inglaterra, juntamente com o duque de Edimburgo, se deslocou até às “profundezas” da selva do Quénia, para observar a fauna e a flora do país, a primeira “paragem” da sua viagem pela Commonwealth – organização intergovernamental composta por 53 países membros independentes. Uma espécie de prelúdio antes de embarcarem para a Austrália.
Foi no dia 1 de fevereiro de 1952 que a princesa e o duque de Edimburgo desembarcaram em Nairóbi na primeira etapa de uma viagem em nome do Rei que estava doente, para passar alguns dias no Sagana Lodge, um bangaló que havia sido um presente de casamento do governo queniano. Daí, viajaram para a cidade de Nyeri e passaram a noite na selva. “Toda a nossa escola veio dar as boas-vindas à princesa e ao duque a caminho de Treetops”, afirmou Jas Singh, agora com 84 anos, que viveu em Nyeri toda a sua vida, numa reportagem do Daily Mail.
Naquela altura, os visitantes do hotel enfrentavam uma caminhada íngreme de mais de 500 metros pela floresta a partir do estacionamento mais próximo, antes de chegarem à escada de nove metros que dava acesso à casa da árvore. As ripas de madeira haviam sido marteladas nas árvores ao longo do caminho, oferecendo um meio de fuga de animais perigosos. Na época, não era possível oferecer uma grande proteção. Um leopardo poderia escalá-los mais rápido do que um humano, e, por exemplo, apenas dois dias após a visita da princesa, quatro árvores de “fuga” foram arrancadas por elefantes.
Para a visita de Isabel, Walter pediu a Jim Corbett, famoso perito em caça grossa, para trabalhar como “escolta real”. Corbett era uma espécie de “celebridade da era colonial”, muito conhecido por caçar alguns dos maiores “felinos devoradores de homens” até então conhecidos, e ficou de guarda para que nada pusesse em perigo a princesa – quer fossem animais ou “insurgentes Mau Mau”. Pouco antes da sua morte em 1955, Corbett publicou um breve relato da visita, o livro Tree Tops. Nele, descreveu o susto que apanhou quando vários elefantes machos avançaram pela floresta assim que o grupo real apareceu. “Um elefante fêmea estava a apenas dez metros da princesa quando alcançou a escada, mas a princesa manteve o sangue-frio”, revelou. Além disso, o caçador contou que Isabel levava sempre uma câmara de filmar na mão, pois “não queria perder nenhum momento”. Otimista, chegou mesmo a falar com ele sobre a confiança que tinha na recuperação do pai.
Contudo, na manhã seguinte a notícia da morte do Rei chegou à imprensa no Outspan Hotel, que, por sua vez, alertou o seu secretário particular, Martin Charteris, que ligou para o ajudante de campo do duque, que contou ao duque, que, por fim, levou a sua jovem esposa ao jardim de Sagana Lodge e lá lhe deu a terrível notícia. Lady Pamela Hicks, que era a dama de companhia da princesa e também prima de Philip, disse que a herdeira do trono e o marido foram “as últimas pessoas no mundo a ouvir que o Rei havia morrido”. “Ela sobe à árvore como uma princesa. O Rei morre naquela noite e ela desce as escadas no dia seguinte como Rainha”, sublinhou Lady Pamela. Durante a sua estadia, o casal fez uma lista de todos os animais que encontrou durante a estadia. De acordo com a AFP, a lista contém cerca de 40 animais, como babuínos, rinocerontes e antílopes, e ficou emoldurada no quarto “real”, uma atração muito apreciada pelos turistas. Isabel só seria coroada no dia 2 de junho do ano seguinte.
A transformação do Treetops Dois anos a seguir, aconteceu outra “tragédia”. A árvore original, juntamente com a casa onde a Rainha estava hospedada naquela noite, desapareceu. Um incêndio ateado por guerrilheiros Mau Mau que protestavam contra o domínio colonial no Quénia destruiu completamente a pequena construção.
Um hotel novo e muito maior foi construído, em 1957, sobre estacas de madeira no lado oposto ao local original, onde continua de pé até hoje. Com a mesma vista para o riacho perto da rota de migração de elefantes para o Monte Quénia. Com 35 quartos, trata-se de uma espécie de grande arca de madeira erguendo-se na savana africana. À noite, as portas fechavam-se para ninguém sair, uma vez que o local era frequentado por animais selvagens. Nos pequenos quartos, semelhantes a camarotes de um navio, os hóspedes podiam escolher ser avisados por um alerta sempre que um dos raros rinocerontes brancos da reserva, por exemplo, ia beber ao charco, para poderem assistir pela janela ao grande espetáculo da natureza.
Infelizmente nem a fama o salvou. Nos últimos dois anos, o Treetops Hotel ficou vazio, “engolido pela vegetação” e invadido pelos animais selvagens. O espaço encontrava-se fechado para o mundo exterior por quilómetros de cercas elétricas e portões de aço com cadeados, que também foram destruídos logo em 2020. “O local foi invadido pela vida selvagem que causou danos”, elucidou Ndegwa à mesma publicação. “Devido à covid-19, não estávamos atentos à cerca e foi por isso que os elefantes acabaram por entrar, acabando por destruir tudo. É por isso que temos aqui muito lixo”, acrescentou.
Enquanto o mítico hotel espera ser transformado em património nacional, restam as memórias daqueles que ali saborearam a magia de África e as imagens a preto e branco que continuarão a relembrar o vínculo entre a Rainha e o Parque Nacional de Aberdare.