Outra vez a guerra, outra vez a sua ameaça que chega a formular uma espécie de promessa, isto nos períodos em que o homem perdeu já de vista a devastação que produz sempre que cede à tentação de dominar a História. Quando hoje temos até a impressão de nos ser impossível tomar-lhe o pulso, a guerra não nos aterroriza pois temos a imaginação embotada, custa-nos mesmo supor tudo aquilo que ainda iremos perder, talvez porque as coisas nos surgem desvinculadas, cada uma isolada em si mesma, privadas de autêntico significado. Em tempos a guerra surgiu como uma promessa para os audazes provarem a sua valentia, hoje são os melancólicos que chegam a entreter-se por um pouco com essa perspectiva, vendo tudo à volta florescer e desvanecer-se sem sentido. Como as personagens de um romance de Banville, vêem-se sempre na proa de um navio que naufraga, mas julgam entrever, ao afundarem-se, uma nova terra que emerge.
Antes da guerra, soa o seu clarim, essa ameaça “que restitui aos olhos o dom da visão”. Ou, pelo menos, assim parece. Invariavelmente, pouco depois o mundo é relembrado de que a guerra significa apenas supressão. Quando o medo começa por fim a enraizar-se é já tarde demais. Mas os homens que estão habituados a farejar lucros e oportunidades nas situações mais desesperadas, sabem como a guerra suspende certas leis que são vistas como entraves, e é assim, pelos olhos de uma figura intensa e enigmática, esse excêntrico bilionário norte-americano que foi Howard Hughes (o original em relação ao qual figuras como Elon Musk e Jeff Bezos não passam de cópias um tanto desenxabidas), alguém que procurou nos seus negócios e empreendimentos, nas suas aventuras e também nas incursões artísticas, garantir que se salvaria do esquecimento, é através da sua perspectiva que uma poeta portuguesa procurou relembrar-nos da salivação que a ameaça de guerra provoca em tantos: “Não há solo mais fecundo do que aquele/ que foi rasgado pelas trincheiras,/ não há flores mais belas/ do que aquelas que nele germinaram (…) A destruição é uma purga.” Este homem que cospe “com soberba para o oceano” surge-nos com a sua obsessão e um desvairado ânimo em pano de fundo, como o deus ao qual se rendeu toda uma época, e que, mesmo se hoje é um mito que, nas suas múltiplas facetas, acabou devorado por sucessores com uma capacidade de fascínio cada vez mais vulgar, surge-nos num livro em todos os aspectos estranho aos modos reconhecíveis da poesia que se publica entre nós, e que se afastou da experimentação e do fulgor criativo, para se acrisolar em gaguejantes autoficções. Hoje, poderíamos referir-nos à poesia como essa espécie de cemitério onde morrem as metáforas. Cada vez é menor o número de poetas fascinados pela realidade e pelas histórias que ela inventa, pelos factos realmente acontecidos e pelas personagens realmente vividas, ou por esses duplos e variações que permitem supor o que terá dominado as existências daqueles que viram o mundo nos momentos em que o seu eixo mais vacilou. Esse exercício de capturar um certo registo interno que não se abandona inteiramente à fantasia revigora o próprio sentido de uma arte como a poesia que ganha ímpeto por explodir como uma onda contra limites rigorosos. É isto o que Beatriz Almeida Rodrigues se propõe em “Manganês”, naquele que é de longe um dos mais exímios e fascinantes livros de poesia portuguesa publicados nos últimos anos. Desafiada por João Pedro Azul a ocupar uma casa da tabela periódica nessa invulgar coleccção de poesia chamada “elementário”, em que cada um dos livros é dedicado a um dos elementos químicos conhecidos e às suas propriedades, em vez de manobrar com relutância em torno do desafio, procurando recorrer a fórmulas e categorias vagas, urdindo devaneios e tentando que estes resultem numa estrutura interpretativa cómoda ainda que nebulosa, a poeta levou bem mais longe do que seria de esperar o incentivo que recebeu. Nesta edição em formato de bolso, com selo da Flan de Tal, Beatriz Almeida Rodrigues alcança algo de magistral indo ao passado, levando-nos a um obscuro episódio do tempo da Guerra Fria, quando, em março de 1968, um submarino soviético se afundou no Oceano Pacífico, a uma profundidade de cinco mil metros da superfície da água. A CIA meteu-se em campo e passou os anos seguintes a tentar congeminar uma forma de resgatar o submarino do leito do mar, esperando que no seu interior o tesouro se encontrasse na forma de segredos que expusessem o coração do inimigo. Mas para que a operação fosse bem sucedida, não bastaria recuperar aquele monstro com mais de duas toneladas, mas era preciso fazê-lo sem levantar suspeitas, de modo a que a sua canção não se perdesse. Nestas alturas, dá jeito a um governo poder dissimular os seus fins sob a capa dessas personagens que, nos nossos dias, ainda cumprem desígnios quase-mitológicos, e não terá sido difícil convencer Howard Hughes a emprestar a sua aura e ebriedade entre o génio e a loucura para levar por diante uma manobra de distracção convincente de modo a esconder os verdadeiros propósitos da missão. Como nos lembra Beatriz Almeida Rodrigues no breve prólogo do seu livro, Hughes possuía já um legado notável nas indústrias da aviação e do cinema e “era congenitamente incapaz de recusar um desafio – sobretudo neste momento da sua vida em que se lhe vincava na carne o devorador estigma da velhice”. Assim, foi como se o Estado bancasse a sua disposição de erguer monumentos faraónicos celebrando a sua passagem pela terra, e não terá sido difícil para ele assumir publicamente que iria investir uma fortuna numa demanda estapafúrdia, que passaria por extrair nódulos de manganês do fundo oceânico, os quais seriam usados para a produção de ligas de aço, o que lhe permitiria erguer a sua pirâmide, “um edifício feito de aço inoxidável, resistente a todas as vicissitudes dos elementos, que ultrapassaria em dimensão e valor qualquer outro, existente ou imaginado, tornando-se assim o baluarte da superioridade civilizacional da América”. Esta gigantesco acto de prestidigitação funcionou mais para revelar a fraqueza do espírito daquela sociedade, pois se o KGB cedo ficou ao corrente do plano secreto do adversário, concluiu que este não levaria a nada, e borrifou-se nele. Diz-nos a poeta que prova disso é que terá introduzido a bordo do navio baptizado Hughes Glomar Explorer um espião conhecido pela letra M., pelo carácter de vira-casacas e pela incompetência. Ou seja, era mais uma peça na engrenagem que poderia ajudar a afundar os americanos na sua soberba. O certo é que, se o plano não iludiu os soviéticos, houve uma série de magnatas que ouviram o disparo e, com receio de estarem a perder uma oportunidade de ouro, se lançaram nos mares tentando levantar os depósitos de ferromanganês. Hoje, esta corrida ao ouro gera receitas fenomenais, mas há meio século, o tiro soou cedo demais, e deu origem a uma série de falhanços tecnológicos e fortunas esbanjadas. Curiosamente, o Glomar viria a ser mais tarde cedido num acordo de leasing à empresa Ocean Minerals com vista a levantar nódulos ao largo da Califórnia, mas o presidente terá reconhecido a dificuldade da empreitada, dizendo que era algo comparável a alguém que estivesse no topo do Empire State Building tentar apanhar pedras no passeio, de noite, usando uma palhinha gigantesca.
Se com o seu plano a CIA não conseguiu mais do que fazer de flautista de Hamelin hipnotizando as suas ratazanas embriagadas pela perspectiva de lucros descomunais, a poeta lembra que a missão foi coroada, apesar de tudo, por uma modesta vitória no Verão de 1974, com o resgate parcial do submarino soviético. “Entre os conteúdos recuperados, encontravam-se dois torpedos armados com ogivas nucleares, três máquinas criptográficas e os restos mortais de seis tripulantes soviéticos, a quem foi dado um funeral a bordo. Assim, os corpos resgatados foram restituídos ao mar, encapsulados num jazigo apropriadamente vermelho.”
Quanto ao longo poema que se segue, dividido em quatro partes, e seguido ainda de um belíssimo epílogo, que alarga numa simetria fantasista este jogo entre o que resta das páginas de História e aquilo que se transubstancia na Natureza, tantas vezes por efeito da acção do homem, Beatriz Almeida Rodrigues diz-nos que essas páginas foram encontradas “entre os registos diários do espião M., que, após dezenas de observações prosaicas, aparentemente comovido pela homenagem aos seus conterrâneos, começou a escrever em verso”.
Este “começou a escrever em verso” é uma chave decisiva de leitura para o que se segue, pois o impulso aqui presente justifica o próprio tom do poema, que é manifestamente narrativo, mas que parece encadeado entre mar e céu, naquela condensação mítica de natureza e história, balançando entre uma identidade de nações em confronto e de indivíduos que se espelham, abolindo naquela profundidade marinha as razões de ordem política que fazem deles inimigos. Há um ameaço épico que vai muito além da epígrafe inicial, extraída d’Os Lusíadas (Agora a ver parece que desciam/ As íntimas entranhas do Profundo”), e o que há de magistral neste breve opúsculo é a sua capacidade de concreção harmoniosa de elementos contraditórios, tão díspares, e um invulgaríssimo efeito em que o que é dito consegue dispersar-se movendo-se sempre dentro desse rigor que leva a que nos abandonemos a uma canção, essa que nos mostra que não existe uma oposição entre Natureza e História, pois, como vinca Claudio Magris, tudo se revolve e abate do mesmo modo, participando numa “massa única, um processo de agregação e desagregação que cria, forma, plasma, corrói, esfacela e destrói, em combinações e com métodos diversos, conquilhas e praias, cidades e impérios, espécies animais e sistemas filosóficos, dinossauros, partidos políticos e gerações”. É também este grande escritor italiano quem nos lembra que Alessandro Manzoni dizia que os poetas não têm o dever de “inventar os factos”, mas sim o de preencher os espaços entre eles, as lacunas da História, e de contar o que esta omite, os sentimentos e os pensamentos dos homens, a sua esperança, a sua raiva ou a sua melancolia, dos quais se perdeu o rasto. O historiador apura e narra os eventos, e ao escritor cabe imaginar e contar como os homens viveram.
Não faltam, é claro exemplos de poetas que se acharam no direito de inventar os factos ou distorcê-los como bem lhes apetecia, da forma mais grotesca ou habilidosa, com os fins mais pérfidos, e nem sempre se pode dizer que não tenha a arte aprendido tanto com esse modo de agredir o real, evadir-se da sua prisão, fosse por capricho, ou por serem os versos como uma vingança, em confronto com uma época que só deixava como saída aos espíritos fortes, aos mais notáveis artistas, uma forma de rebelião quase secreta, ocupando-se do contrabando entre este mundo e o outro. Beatriz Almeida Rodrigues não está de um lado nem do outro, move-se entre os dois, entre a lírica e a épica, ficando muito longe dos actuais traficantes e finórios, que lidam com os referentes culturais e históricos como se fosse essa quinquilharia que se impinge aos turistas nos passeios junto à praia. Ao começar a escrever em verso, percebe-se o desejo de abandonar fórmulas e categorias predeterminas, estruturas interpretativas pré-fabricadas; a canção é para aqueles que estão fatigados das mentiras e procuram chamar a si a combinação dos efeitos de verdade que se ordenam ao nosso redor. Basta os primeiros versos do longo poema para sentir uma espécie de compulsão a entregar-se a essa outra voz: “Quão branda é ao corpo a sepultura./ Fugaz gota sanguínea sorvida/ pela brandura desleal das ondas./ Quão branda é ao corpo a lei perene/ que herdámos com a brandura/ de uma revolta sem fim nem fruto,/ com a amargura branda que polui/ as artérias sem consolo senão aquele/ que administra a branda dama da noite (…) Poderemos ainda chamar corpo a estes restos,/ vida àquilo que se escoou/ entre o fanatismo e o medo,/ entre a bandeira e a bomba.”
Esta fulgurante obra de estreia surgiu da forma mais discreta, e apesar de se impor a contrapelo face a tudo o que tem sido publicado, passou justamente sem qualquer menção, embora exprima de forma maravilhosamente calibrada “este eclipse de vida e de esperança que hoje faz com que todos – jovens e velhos – se sintam feridos de morte” (Magris). É um livro que escapa às voltas em torno desse ralo do Eu, às asserções mais subjectivas, aos rodeios degradantes da pose, para relativizar a contingência de um sujeito central e centralizador. Aqui, se o mar nos surge ameaçado pelos homens, pelas suas intrigas, se também ele parece ferido de morte, o seu uivo e canção reclamam a totalidade , dirigem-se a um horizonte bem mais largo, que abrange este tempo e outros. “Sucessivas correntes lavaram destas ossadas a carne/ com a promessa de lhes dar uma segunda juventude,/ de transmutar em coral o osso, de recolher dos olhos/ duas pérolas incólumes/ enlevadas em eterno esquecimento./ Nas transubstanciações do profundo marítimo,/ nenhum desperdício./ O mesmo não se pode esperar dos homens./ Encapsuladas por um esquife vermelho,/ as ossadas não voltarão a encontrar no mar/ o engenhoso artífice mas um museu.”
Pela voz do seu espião, Beatriz Almeida Rodrigues liberta-nos da rigidez moral e intelectual que caracteriza o registo caduco da escrita poética, que se transforma em mais outro dos modos processionais de uma noite sem fundo, sem volta, para nos devolver a uma condição de estranheza, própria de toda a aventura, mesmo as mais negras, e, assim, introduz uma fundamental laceração. “Nos primeiros dias vomitei tanto que temi/ que me fugisse a alma pela boca.// Angustia-me pensar num futuro em que as máquinas sejam silenciosas./ No mar alto impera o silêncio, o céu carregado/ de sinais equívocos e portentosos.” E num comentário que se dirige ao coração desta época, o seu espião deixa-nos este auto-retrato: “Muitas vezes me confundem com outra pessoa,/ a mim mesmo me confundo frequentemente./ Falta ao meu corpo uma marca distintiva,/ no meu rosto sempre a mesma expressão,/ vaga e entorpecida, de quem espera por si mesmo.”
Este agente que trai um lado e o outro não sabe já quem serve, não sabendo mesmo se não foi entregue a uma missão de loucos, como castigo pela sua deslealdade. Ao mesmo tempo, essa incapacidade de se reconhecer ligado a uma origem pré-natal faz dele um perfeito cidadão desse país vastíssimo em que tudo se dissolve, dessa vulnerabilidade de quem paira indefeso sobre negros abismos, e, no que respeita ao navio, em que foi embarcado, diz-nos que, “Inventada ontem pelo homem,/ Glomar é uma besta de mil anos,/ cheia de insídias e reentrâncias.” É tudo o que o protege de ser engolido, de resistir a esse fim que o cerca de todos os lados: “Chego a preferir o rugido das máquinas ao do mar/ o zumbido mecânico das rodas dentadas/ ou o ruído negro e opaco dos motores,/ a fúria estrepitosa das perfuradoras e da garra de aço,/ os apitos febris, os burburinhos civilizacionais.” Este homem fala-nos dessa forma de ansiedade paranoica que, em vez de nos acicatar, apenas nos amodorra ainda mais. Hoje, mais do que nunca, conhecemos esta monotonia que esbate, por vezes, contra “uma certa antecipação alegre da morte”. A guerra faz-nos esperar, e ainda que muitos não conheçam dela outra coisa senão a espera, enquanto medo se enraíza, ela vai produzindo os seus efeitos. “Acordo todas as manhãs encharcado em suor,/ pensando que hoje é o dia em que o mundo/ será engolido por uma nuvem radioactiva./ Ocultas as baratas vigiam-nos, sabendo que/ de entre nós alguns hão-de sobreviver à explosão/ para assistir à metamorfose compulsória/ do seu corpo (…) Como em raros espécimes humanos,/ o instinto afilado parece ser aguçado/ pela sua imensa estupidez./ Cortem a cabeça a uma barata/ e hábil descobrirá refúgio/ para o corpo que lhe sobeja.”