Os votos dos emigrantes e o estranho caso da dependência do alívio geral


A anulação de parte substancial dos votos da emigração portuguesa na Europa e a ordem de repetição das eleições é apenas um de muitos episódios de desconsideração das Comunidades Portuguesas no Mundo.


Não sei se será da sedimentação da cultura cristã, mas, em Portugal, gostamos de expiar com ligeireza as questões, os problemas e as situações, ocorrendo, com frequência excessiva, a morte da culpa solteira, por ausência de par responsável. Entre proclamações de não assunto e foco nas soluções de recurso para remendar disparates da ação ou da omissão política, há uma busca incessante pela sensação de alívio geral, mesmo quando a evidência dos factos projeta as realidades para o domínio da penalização do interesse nacional. O importante é expiar a incompetência, o disparate ou outra malfeitoria qualquer com uma desculpa ou argumento gerador de uma sensação generalizada de alívio no radar das preocupações quotidianas dos portugueses.

E os emigrantes, definitivamente não estão nesse radar, nem do Estado, nem da generalidade dos portugueses. Não é agosto, em que as economias locais florescem da arribação anual, logo, estão longe da vista e do coração dos decisores nacionais. A anulação de parte substancial dos votos da emigração portuguesa na Europa e a ordem de repetição das eleições, intermediada por um pedido de desculpa, sem culpa maior, é apenas um de muitos episódios reiterados de desconsideração das Comunidades Portuguesas no Mundo.

Há um preconceito nacional instalado, desde logo nas estruturas do Estado, fisco e afins, em relação aos portugueses que residem no exterior do território nacional, que amiúde são mais valorizados nos países de acolhimento do que na sua terra de origem, que os olha de lado, num bailado de interação em que são mais estrangeiros em Portugal do que nas paragens que buscaram para estudar, trabalhar e viver. Na realidade dos portugueses no exterior, há situações muitos díspares, entre quem mal tem para sobreviver e quem dispõe de recursos financeiros acumulados, saberes e competências que deveriam ser acarinhados pelo país. Este quadro é particularmente surreal, quando ao longo de décadas em diversos momentos de dificuldades, Portugal andou a mendigar junto de regime de democraticidade mais do que duvidosas relações de socorro financeiro quando tinha à mão de semear gente que de origem e de coração tinha predisposição para ajudar o seu país, que quase sempre os desconsiderou. Sim, não são uns fugazes encontros de Comunidades ou umas receções por ocasião das visitas presidenciais ou governativas que alteram o quadro geral de destrato, uma vez mais evidente pela ligeireza da anulação da votação e da repetição das eleições determinada pelo Tribunal Constitucional.

Costa pediu desculpa, expiou a inação na correção da inadequação da lei eleitoral e as falhas da organização do processo eleitoral, o país mantém-se em suspenso mais uns meses, sem parlamento e sem governo, na plenitude das funções e há um alívio geral. Podemos coletivamente voltar aos reality shows, às redes sociais e ao dia-a-dia de sobrevivência, apesar de outros alívios que arribam e de demasiados que teimam a chegar, para grande agrura das preocupações de alguns. Juros, combustíveis, preço da eletricidade, inflação, fragilidades de sustentabilidade nos serviços públicos, anestesia geral de ação significativa à espera de governo e instabilidade global nas relações das nações e nos mercados são apenas alguns temas que não configuram nenhum tipo de alívio. Aliás, alguns estão a tornar-se questões de difícil expiação simplificada orientada para o alívio geral. Por exemplo, quando numa grande empresa nacional o volume da conta mensal da eletricidade já é superior à massa salarial, que no caso vertente é muito superior às médias nacionais, as campainhas do inconformismo consequente deveriam tocar, mas não. O país, ou porque a receita é muito importante para o Estado ou porque está à espera de corrigir um erro eleitoral que não é responsabilidade de ninguém, mantém-se em suspenso.

Choca a ligeireza com que se tratam as coisas da Democracia, qual semente de fenómenos extremistas e populistas, que alguns querem agora combater depois de terem permitido que se gerassem condições para a sua implantação territorial e adesão popular. Não é preciso nenhum estudo para perceber que, na ação e na omissão de algumas das opções políticas das últimas décadas estão as raízes do descontentamento com o sistema, que, não por acaso, é o democrático e é destratado como ocorreu com o voto dos emigrantes, obrigados a ter à mão fotocópias de cartões de cidadão para enviar com o correio eleitoral. Estamos a falar de cidadãos, alguns com baixa literacia digital, que, por ausência de atendimento nos serviços consulares do Estado nos seus países, por vezes, são empurrados a ter de vir em low costs em modo toca e foge a Portugal tratar da renovação desse documento que querem que se fotocopie para acompanhar a expressão da sua vontade eleitoral democrática.

A administração eleitoral das Comunidades Portuguesas no Mundo, não tem uns que são anjos e outros que são diabos, mas não precisava de tamanha desconsideração pela expressão da vontade dos nossos conterrâneos, expiada através de uma repetição eleitoral, acabrunhada e sem motivação, que servirá apenas para alívio geral da constitucionalidade do ato e absolvição da incompetência, já que a vergonha alheia floresce em barda.

É preciso aliviar, relativizar e seguir os mesmos caminhos poucochinhos em quase tudo, absolutos nas respostas aos quotidianos q.b. com manutenção dos equilíbrios dos interesses instalados, entre alívios e apertos. Nos costumes, o tempo é de alívio geral. Não será nem de libertação, nem definitivo, num tempo pontuado por demasiados apertos, impasses e nuvens escuras.

Em Portugal, procuram-se genericamente alívios gerais, sem cuidar da substância dos problemas, como acontecerá com o preconceito injusto em relação às Comunidades Portuguesas no Mundo, expresso em tantas realidades além da miserável consideração pelos votos em diversas mesas da Europa. Absoluta mudança de mentalidades e de atitudes precisa-se!

NOTAS FINAIS

OS SOBRESSALTOS TRAZEM ALGUMA APRENDIZAGEM. Depois dos sobressaltos reais e fatais para muitos da pandemia, que nos consciencializou da globalização dos riscos e das dependências das cadeias de fornecimento, estamos confrontados com os sobressaltos digitais, subjacentes à afirmação do poder de algumas nações e de outros tipos de criminalidades solitária ou organizada, tão discretos quanto eficazes. Aprenderemos alguma coisa com as fragilidades?

NÃO SE DAR AO RESPEITO. O Presidente da República, acompanhado pelo seu homólogo Esloveno, Borut Pahor, e pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, inauguraram o “Banco da Amizade”, em Lisboa. Um banco de jardim, mesmo. O Esloveno atrasou-se na partida, o Estado português teve de pagar 40 mil euros para fretar um avião para o levar a casa. Depois estranham as razões do populismo.

 

Escreve à segunda-feira