Camané. “Não dou às pessoas aquilo que elas querem, dou aquilo que eu quero”

Camané. “Não dou às pessoas aquilo que elas querem, dou aquilo que eu quero”


Camané regressou ao Teatro da Trindade, local onde deu o seu primeiro grande concerto, para apresentar na íntegra Horas Vazias, o seu disco mais recente.


“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, cantava José Mário Branco na imortal canção, de 1971. A máxima cunhada por Camões não se aplica a Horas Vazias, novo disco de originais do fadista Camané, editado em outubro do ano passado, o primeiro desde Infinito Presente, lançado em 2015, e que, na última terça-feira, foi apresentado pela primeira vez ao vivo, no Teatro da Trindade. “Fado é uma estética”, explica o cantor i, em conversa com o i. “É uma estética musical que é minha e eu não quero fugir dela”.

Já não podendo contar com a produção de José Mário Branco, falecido em 2019, o fadista recorreu ao produtor de jazz Pedro Moreira, que o ajudou a manter-se fiel à sua linguagem enquanto artista e ao fado, género a que tem dedicado a sua vida e a sua carreira. Acerca da possibilidade de enveredar por tendências mais modernas e procurar adotar sons de estilos musicais mais contemporâneos, Camané explica-nos que, apesar de apreciar o trabalho de músicos como Ana Moura, e de acreditar que existe espaço para todos, isso é algo que não equaciona: “Sempre fui e trabalhei assim e não vou mudá-la por nenhuma razão extra. O fado é para mexer com pinças”, diz-nos, citando Zé Mário.

Depois de seis anos sem lançar um álbum de originais em nome próprio, eis que no ano passado surgiu Horas Vazias. O que o motivou a lançar este trabalho?

Em 2019, lancei com o Mário Laginha o Aqui Está-se Sossegado, um trabalho que, embora tenha alguns temas que já faziam parte do meu reportório, conta com músicas originais de ambos. Já tínhamos colaborado juntos, por isso fez-nos sentido começar a tocar com mais regularidade juntos. Primeiro, antes de pensarmos no disco, decidimos fazer uma tour juntos, e, ao fim de dez concertos, percebemos que tínhamos ali um disco. Mais tarde, decidi que devia gravar um disco meu. Aos poucos comecei a pensar nas pessoas com quem gostava de colaborar, como o Jorge Palma, alguém que o Zé Mário Branco estava sempre a elogiar, quando trabalhávamos juntos, e as músicas do disco foram surgindo ao acaso. O Pedro Abrunhosa ligou-me a dizer que tinha uma música sobre o Campo Grande. A Carminho fez uma música lindíssima para uma letra do Júlio Dinis. O Sérgio Godinho, com quem já tinha trabalhado, voltou a entrar neste disco, assim como o Vitorino. Todo este processo foi-se desenrolando muito naturalmente e de uma forma muito interessante. Ainda tinha mais músicas para gravar, mas achei que, de forma a transportar o ouvinte para a minha estética musical, que é o fado, estes temas que entraram no disco é que tinham a ver comigo e com a minha forma de estar. O Horas Vazias era o disco que eu queria fazer.

Com a pandemia, teve mais tempo para trabalhar nas músicas?

Sim, é verdade, isso foi algo que se sentiu nos ensaios, tivemos a possibilidade de repetirmos as músicas imensas vezes. Este disco foi gravado em takes, já tinha acontecido com o Laginha, e, agora, voltou a acontecer. Houve tanta repetição para criar a voz guia, para os músicos se sentirem mais à vontade com as composições, que houve muitos elementos que entraram mais naturalmente no disco. Por exemplo, quando fiz a voz guia, esta acabou por ser a voz definitiva do disco. 

O nome do disco, Horas Vazias, também está ligado a estes tempos que ainda estamos a enfrentar?

Horas Vazias tem a ver com a disponibilidade que temos para preencher os vazios da nossa vida. Ouvimos música, vamos ao teatro, lemos um livro… São estas pequenas coisas que nos alimentam a alma. Não existe uma ligação com a pandemia, mas sim com a disponibilidade para receber, para alimentar, para preencher esse vazio.

Então sente que é essa a função destas músicas, preencher um vazio?

Existe um lado de disponibilidade em todos nós. Quando eu ouço música ou consumo outro tipo de arte, sinto essa necessidade. Há um vazio que precisamos de preencher, precisamos de alimentar a alma, de encher um copo que está vazio.

Este é o primeiro disco que faz sem o Zé Mário Branco. Todos sabemos que ele era um músico gigante, como foi não contar com a sua ajuda neste trabalho?

Foi muito difícil, até mesmo antes de sequer pensar neste trabalho. Mas, de certa forma, o Zé Mário está presente em tudo aquilo que este disco tem. Ele esteve sempre presente ao longo do meu percurso e deixou uma marca impossível de desaparecer. Por exemplo, na forma como os músicos tocam, uma vez que eles continuam a ser os mesmos de quando eu colaborava com ele. Até o novo produtor deste disco, Pedro Moreira, começou a gostar do meu trabalho por causa dos discos do Zé Mário. Quando o convidei para produzir este disco, ele já veio com um certo conhecimento de toda a minha discografia. Aliás, este disco conta com uma música dele, Tenho Dois Corações, e que conta com um poema da Amália Rodrigues. Esta música já tinha sido gravada pela Amélia Muge, que também fez um fado para este disco, Se a Solidão Fosse, e eu decidi pedir-lhe para gravar novamente este tema à minha forma. Portanto, posso dizer que o Zé Mário faz parte deste disco e vai fazer sempre parte da minha música e da minha vida. 

Ainda se lembra da primeira vez que teve contacto com ele e começaram a fazer música juntos?

Conheci-o, tinha eu 21 anos, por intermédio do Carlos do Carmo. Estava a descer a Rua da Barroca, vinha do Faia, uma casa de fados onde tinha acabado de estar a cantar, e encontrei o Carlos do Carmo. Parei para conversar com ele e com um senhor que o acompanhava, era o Zé Mário. Ele apresentou-nos e foi nesse momento que nos começámos a conhecer melhor. Ele passou a ir de vez em quando ao Faia para me ver a cantar, com a atriz Manuela de Freitas, que também escreveu inúmeros fados para mim. Em 1993, quando estava a pensar gravar o meu primeiro disco, convidei-o para produzir esse trabalho e ele aceitou. Mais tarde, recebi um convite da Valentim de Carvalho, que agora é a Warner, para gravar um álbum, eu aceitei, mas coloquei uma condição: “Posso gravar, mas já tenho o meu produtor”. 

Todos sabemos que o Zé Mário Branco era um excelente músico, mas nem sempre valorizamos o seu trabalho enquanto produtor, não só no seu espólio a solo, nomeadamente, no Ser Solidário, e até a solo, como nos trabalhos do Zeca Afonso ou do Sérgio Godinho.

Especialmente no caso do Zeca, ele esteve envolvido nos seus melhores álbuns. O Zé Mário foi uma das primeiras pessoas a render-se ao fado, antes de trabalhar comigo já se tinha rendido ao Carlos do Carmo. Pessoas como ele, assim como o Sérgio Godinho, de alguma forma perceberam que é uma música que tem coisas muito boas, assim como coisas menos boas, mas acima de tudo que é uma música com uma expressão incrível. O Zé Mário tinha uma ideia em relação ao fado muito parecida com a minha e isso ajudou-me a desenvolver o meu trabalho e carreira.

Neste disco colabora com o Pedro Moreira, que é mais reconhecido pelo seu trabalho no jazz. É importante fugir da ideia do fado puro e procurar novos caminhos?

Não, o meu objetivo é respeitar e manter o tempo e a estética do fado tradicional. Claro que canto coisas novas, mas só canto coisas que consigo transportar para a minha forma de cantar, que está ligada ao fado tradicional. Claro que existem elementos que apenas poderão ser julgados com uma maior distância temporal. 

Nesse caso, por que não convidar alguém com um percurso mais ligado ao fado tradicional?

Foi algo que aconteceu, tal como aconteceu com o Zé Mário, que também tinha um percurso muito distante do fado tradicional. Existia uma ideia de mostrar que estas pessoas, apesar do seu percurso, também são portuguesas e percebem de fado. Também sabem, ouviram e conhecem. No caso do Pedro, que toda a vida ouviu fado, existe uma ligação entre o jazz e o blues, e o fado é o blues português. Os músicos com essa escola possuem uma certa ligação ao fado, eles conseguem transportar, perceber e identificar-se com este estilo de música. Se ouvirmos o que está aqui, transportamo-nos 30 anos para o passado e é possível ouvir muitos dos mesmos elementos. Esta é uma ideia do Zé Mário: “O fado é para mexer com pinças”. É importante não desvirtuar. Todo este sentimento pode ser ouvido na forma dos guitarristas tocarem, na minha voz, mas também com o bom gosto que teve o Pedro Moreira nos arranjos e como conseguiu este enquadramento do ambiente musical que é o fado tradicional.

Visto que é uma das principais vozes do fado em Portugal, como olha para os artistas que estão a tentar “reinventar” o fado, como é o caso da Ana Moura? Existe espaço para esta evolução ou podem co-existir os dois estilos?

Acredito que há espaço para tudo, mas a minha forma de ser é esta. Portanto, não dou às pessoas aquilo que elas querem, dou aquilo que eu quero. Sempre fui e trabalhei assim e não vou mudá-la por nenhuma razão extra. Agora, percebo perfeitamente que existe espaço para tudo. Há pessoas que têm uma forma de pensar e que surgem de contextos diferentes, mas de quem eu sou grande fã. Cada um tem a sua forma de estar e de entrar no fado e isso são características que dependem de cada músico.

Está a dizer que não nos vai dar aquilo que queremos, mas a verdade é que com músicos como o Stereossauro, que mistura o fado e a música tradicional portuguesa com elementos mais contemporânea, acabou por lhe dar aquilo que ele queria, ao colaborar na faixa Flor de Maracujá, com influências de música eletrónica. 

Sim, mas isso são contextos diferentes. Gostei imenso do tema, a Amália também está presente no tema e conta com um poema lindíssimo da Capicua, com quem também já colaborei. É uma abordagem diferente, mas são pequenas coisas, são trabalhos pontuais que fui fazendo, como foi o caso dos Humanos, que teve um sucesso enorme, apesar de só termos feito três concertos e um disco. Nunca mais tocámos ao vivo, mas foi algo que ficou ainda hoje. Sempre tive receio que esse trabalho tivesse uma influência direta na minha carreira a solo e naquilo que eu queria fazer, o fado. O David [Fonseca] e a Manuela [Azevedo] também tinham muita vontade de fazer aquilo em que acreditavam, foi por isso que nos juntámos neste projeto e foi muito interessante trabalhar com eles.

A pergunta que tinha apontada era se existia alguma hipótese de introduzir alguns desses elementos mais contemporâneos na sua música, mas penso que já deixou bem claro que é algo que não lhe passa pela cabeça.

O meu som é este e a evolução do meu som culminou aqui. Esta é a minha forma de estar no fado. Quero mudar, mas é consoante o reportório que eu tenho. Não é mudar por mudar, não existe essa intenção. Sou um cantor de fado, só sou cantor por ser fadista. Sempre cantei fado, o meu avô cantou fado, o meu pai cantou fado, mesmo que tenha sido depois de mim, porque exigia que fôssemos cantar aos fins de semana. Cresci no meio dos fados, dos grandes fadistas e é tudo isto que tenho para dar. Claro que vai existindo reportório novo, novas histórias para contar, poetas que quero cantar, sempre tive essa preocupação, mas fado é uma estética, é uma estética musical que é minha e eu não quero fugir dela. Existem outras pessoas que fazem coisas diferentes porque tem a ver com a estética delas, não é uma coisa forçada, como é o caso da Ana Moura, que soa e assenta muito bem, tem a ver com a forma como elas estão. Mas a minha é esta e não tenho outra.

Esta conversa está a acontecer sob o signo do concerto de apresentação do seu novo disco, Horas Vazias. Como se sente por voltar ao Teatro da Trindade, onde deu o seu primeiro grande concerto?

Sinto-me bem, estou muito nervoso por ir para cima do palco, como sempre. Nos últimos tempos tenho realizado muitos concertos, mas todos bastante distintos. Com os adiamentos provocados pela pandemia, tive de fazer muitos concertos agora de trabalhos anteriores, ou concertos onde já tento incluir estes temas novos. Neste espetáculo, vou apresentar, pela primeira vez, o Horas Vazias na íntegra. Sempre tive o sonho de realizar um concerto assim, onde apresentava um disco de uma ponta à outra. Lembro-me de ouvir concertos de artistas que adoro que fizeram o mesmo, é algo arriscado, mas as pessoas sabem para aquilo que vêm. É uma sensação algo assustadora, especialmente porque é completamente diferente do concerto que dei há uns dias em Paris, onde incluí três temas novos deste disco. Antes, dei um concerto com o Laginha em Madrid. Agora, este que é complemente diferente e depois outro que também segue esta regra. São muitas letras, muitos poemas e muitas canções.

Quase três décadas depois regressa a esta sala onde deu o seu primeiro grande concerto, que memórias tem desse evento?

Lembro-me perfeitamente de olhar para um camarote e estar a Judite Marceneiro, neta do fadista Alfredo Marceneiro [Camané fez um disco de tributo a este fadista intitulado Canta Marceneiro]. Lembro-me de haver uma série de pessoas na audiência, como o Carlos do Carmo, do Zé Mário, pessoas que admirava imenso. Era um concerto que tinha de correr bem. E correu. Estavam muitos fadistas antigos de que eu gostava imenso e que marcaram presença. Foi aterrorizador, mas foi uma experiência fantástica.