Voltei a vê-las, nos caminhos de Alcácer, na estrada para Grândola ou para a Comporta. Primeiro tímidas, uma ou outra, depois juntando-se às meia-dúzias, pontos vermelho-alegria por entre o branco da gipsofila ou o verde da erva crescida.
“É uma donzela que não quer casar/Veio ao mundo viver/A beleza gratuita de passar/Sem nenhuma paixão a conhecer”, escreveu um dia Torga sobre as papoilas. Está na hora do seu regresso que anuncia andorinhas, também talvez este ano precoces. Flor frágil, parece. Berrante. Às vezes magoa, tanta vermelhidão só de olhar.
E Torga outra vez: “Olhos nos olhos, não/Cora, descora, agita-se de medo/E é todo o desespero e a solidão/De ter na própria vida o seu degredo”. Talvez o seu degredo seja o ópio, essa papoila frágil de suco cheio de morfina. E heroína, igualmente. Os antigos chamavam-lhe anfião e traziam-na da China. Seu degredo e seu segredo. Agitam-se ao sabor da brisa morna que aquece o meio-dia, hora da sombra mais curta, ao longo das margens do Sado. Quem diria que trazem consigo, na sua tão estranha leveza, poemas de morte.
Como o do tenente-coronel canadiano John McCrae, que as viu crescer nos campos dizimados da Flandres por entre túmulos, no tempo da I Grande Guerra: “ In Flanders Fields, the poppies blow/Between the crosses, row on row”. McCrae combateu na segunda Batalha de Ypres onde os alemães lançaram um dos primeiros ataques químicos da história de todas as guerras. O opróbrio da papoila: “If ye break faith with us who die/ We shall not sleep, though poppies grow/In Flanders fields”.
Mas talvez tenha sido outro canadiano, Leroy F. Jackson, que também esteve na guerra, em 1917, a perceber a verdade das papoilas que brotavam nos campos da Flandres, quando resolveu explicar à sua filha ainda pequena: “É tão engraçada/A maneira como crescem as papoilas/Primeiro na sua cauda ondulada/Um bocadinho no nariz/Um bocadinho na barriga/E outro bocadinho nas orelhas/Tenho a certeza de que será um cão/Daqui a meia-dúzia de anos”.