Às vezes, quando fixo os olhos nas águas barrenta do Sado, não vejo o Ganges, como Bernardo Soares na Rua dos Douradores, mas consigo imaginar o Mandovi correndo por entre Candolá e Amonã. Recordo o calor húmido que há dois anos não me arrepia a pele, o espaço pequeno de um bar debaixo de duas figueiras-da-Índia, figueiras-de-Buda, no tempo em que ainda se bebia cerveja Belo em garrafas grandes, de meio-litro, e eu e o meu irmão Michael Fernandes ficávamos horas à conversa, enquanto Gao-Mata, a mãe-vaca, dormia plácida, esperando que as temperaturas brutas se diluíssem para regressarmos à beira-mar de Colva, terra da minha reencontrada adolescência.
De um momento para o outro caiu sobre o mundo a maldição do vírus e a Índia ficou-me distante como nunca tinha sido até hoje, nem nos dias em que a conheci por ter um tio que vivia em Panjim e pelas páginas de Salgari, nos livros comprados a oito escudos no Eduardo dos Jornais, na Rua Tomás da Anunciação. Anseio por um regresso tantas vezes adiado.
Acho que já nos tiraram da maçaneta da porta da vida aquele aviso que dizia “Volto já!”, mas ainda custa a crê-lo, se até o nosso Francisco Febrero (por extenso Xitó) se teve de fechar em casa por causa do maldito covid. Estou mais ou menos como o Arnaldo Jabor, que perguntava: “Se até o Frank Sinatra morreu, o que será de mim?” Pois, se até o gordo está confinado, o que será de nós?
Todas as épocas, nesta varanda larga sobre este rio castanho, Ganges em miniatura e sem metafísica, conto as horas do voltar. Não sei quem, mas lá longe alguém me espera. Talvez a minha mãe chamando o meu nome, debruçada na janela da infância. Talvez o meu avô Joaquim, apontando-me com o dedo, no atlas aberto nos joelhos, a confluência entre o Mandovi e o Zuari. Talvez apenas uma cerveja morna, da marca Belo, debaixo da árvore onde o Buda se iluminou.