Gradualmente, começamos a ficar saturados dos conceitos redutores que hoje não apenas servem para nos orientar como examinar. Os sentimentos parecem eles mesmos derrotados por escalas, funções de avaliação numéricas, lógicas quantitativas. Como diz o editorial do mais recente número da revista Electra, com um dossier dedicado ao tema dos Números, se em tempos Mallarmé afirmava que tudo o que existe no mundo foi feito para acabar nas páginas de um livro, hoje parece que tudo quanto existe foi feito para acabar em folhas de Excel, nesses gráficos ou estatísticas que se tornaram o principal instrumento de governação, legitimando as pretensões de seres burocráticos e que se esquivam a qualquer relação crítica mais sensível. E se a época, obcecada com a quantificação, perdeu todo o encanto ao tornar-se devota de “um deus matemático”, a nossa sinfonia aproxima-se do momento em que o barítono se ergue e entoa: Irmãos, silenciai a vossa canção, deixai ouvir outros sons. E, no entanto, o canto do futuro tarda em chegar-nos à garganta, estando ainda demasiado preso a resmoneios e desabafos que não chegam a assumir uma articulação digna de ser distribuída à orquestra. E o pior é se tentamos caracterizar a vida do espírito recorrendo a estes instrumentos. Num retrato dos “consumos” culturais dos portugueses, levado a cabo pelo Instituto de Ciências Sociais em resultado de uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian, vieram à luz uma série de dados bastante previsíveis em relação a essas práticas.
Mas então o que é que se procurou desta vez quantificar? Com que regularidade visitam os portugueses bibliotecas, museus, monumentos históricos, sítios arqueológicos e galerias de arte. O Inquérito tentou ainda apurar quantas vezes vamos ao cinema, com quem e ver que filmes, e ainda com frequência vamos a concertos e espetáculos ao vivo, incluindo festivais e festas locais. Abrange ainda consumos culturais através da Internet, da televisão e da rádio; práticas de leitura em formato impresso e digital e tenta também pôr o dedo no pulso no que toca ao desenvolvimento de atividades artísticas. Foram inquiridas 2000 pessoas, com mais de 15 anos, nos últimos meses de 2020, “uma amostra que quer representar toda a população portuguesa, e não apenas os artistas, os programadores ou aqueles que frequentam as instituições culturais”. O próprio estudo assume que “os dados aqui apresentados formam um quadro eloquente dos públicos da cultura em Portugal no final do primeiro quartel do século XXI”, adiantando ainda que o seu objetivo primeiro é “fornecer às instituições culturais uma grelha de leitura sobre os seus públicos, atuais e de futuro, e dar um contributo para a produção de políticas públicas inovadoras”. E apresenta dados surpreendentes? A verdade é que não. Confirma-se o quadro persistente e desolador que há décadas nos faz suspirar uma apatia por sabermos que não há meio de nos encontrarmos, e que se em tempos recuados os portugueses passavam boa parte do dia à janela, a televisão tornou-se e persiste como essa abertura que nos tranca por dentro, sendo que a proporção de inquiridos que veem diariamente televisão (90%) é mais do dobro dos que diariamente ouvem rádio (40%) ou se ligam à Internet (41%). Ficamos também a saber que a percentagem de inquiridos que, no último ano, não leram qualquer livro impresso (61%) é francamente superior à registada na vizinha Espanha, um ano atrás (38%). Outros dados recolhidos pelo Instituto de Ciências Sociais indicam que as clivagens sociais no acesso à cultura continuam a traçar um fosso decisivo no que toca aos consumos, especialmente em áreas como a dança ou a música erudita, cuja frequência por um público minoritário serve como uma espécie de culto para os que gostam de ver quem vai e também ser vistos em certos eventos sociais. Assim, ficamos a saber que os hábitos de fruição e participação cultural em Portugal ainda são privilégio dos mais ricos, dos mais novos e dos mais escolarizados. No fundo, o estudo reafirma desequilíbrios educativos, económicos e geográficos que sinalizam a chaga mal cicatrizada de um país pequeno e revoltantemente assimétrico. E se o estudo permite que se indague se a cultura se terá transformado num fator de desigualdade e de exclusão, como faz o jornal Público, então não são os hábitos dos portugueses mas o próprio conceito de cultura que deve obrigar a uma reflexão. O estudo indica que 51% dos operários e 42% dos trabalhadores de serviços dizem que não têm conhecimentos para desfrutar da oferta cultural, e só 7% dos grandes empresários e profissionais liberais sentem o mesmo. Revela ainda que, no escalão mais baixo dos rendimentos, só 6% foram a um museu e 10% a uma sessão de cinema no período abrangido pelo inquérito. Se com estes dados se pretende dar lições, descobrir verdades, formar ou consolidar certas noções, e ainda promover e orientar novas políticas públicas, vale a pena lembrar o que escreveu em maio desse mesmo ano (2020) o crítico cultural António Guerreiro, ao notar como a antiga eficácia da palavra “cultura” se evaporou, adquirindo muitas vezes uma eficácia negativa, como “uma bandeira que desclassifica imediatamente as reivindicações feitas em seu nome”. A “cultura”, segundo ele, tornou-se uma máquina com uma infinita capacidade agregadora, e adiantava que não há nada mais expansivo que a esfera cultural. De acordo com Guerreiro, esta expansão ilimitada da esfera cultural deu-se na razão inversa da retracção da esfera política: “quanto mais avança o cultural (e, já agora, também o estético), mais recua o político”. E então a identificação de certos fenómenos com a ideia que fazemos de “cultura”, passou a funcionar como se lhes fosse apenso um selo garantindo que estes produtos ou manifestações operam como anestésicos políticos. Segundo este crítico, a “democracia cultural” supõe um desejo de anestesia, de denegação das divisões, condenada a soçobrar perante as guerras civis sempre em curso. Em seu entender, num tempo em que a “cultura” é uma máquina de indiferenciação, de inclusão de todas as heterogeneidades, é preciso reativar o sentido de uma cultura que se produza em conflito, e reconhecendo que “nada é mais mortal para ela do que o consenso”. Para isso seria necessário resgatá-la a essa lógica da agregação, que faz com que as políticas públicas que hoje são definidas para a cultura assumam que a defesa do acesso à cultura, o princípio da sua democratização, deve levar-nos a pensar que a cultura para todos é, na verdade, “a cultura dos muitos”.
O que este inquérito reafirma, no fundo, é que aquilo que se toma, hoje, por cultura poderia ser caracterizado por uma série de hábitos estéreis e que não indicam grande coisa sobre a capacidade de uma dada comunidade reclamar um entendimento próprio das coisas, como um sistema de apreensão da realidade nas suas tantas vertentes e também uma espécie de sistema imunitário de forma a defender os espíritos de certos vícios e bloqueios ruidosos. A cultura funcionaria como um princípio de relação livre e aplicação de saberes úteis, que dimanam da nossa identificação com um tempo e um lugar, que só se activa se tiver uma consciência histórica e um desejo de transformar o seu destino. Num dos seus apontamentos, um pensador de tradição marxista como Antonio Gramsci, mostrava já uma aversão forte pela velha acepção da cultura, a qual se liga a um saber enciclopédico, “em que o homem é visto só como um recipiente para encher e atulhar de dados empíricos, de factos desoladores e desconexos que terá, mais tarde, de arrumar no seu cérebro como nas colunas de um dicionário, para poder responder, em qualquer ocasião, aos diversos estímulos do mundo externo”. Para este autor, que foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, esta ideia de cultura serve apenas para criar aquele intelectualismo débil e incolor que produziu uma quantidade de presunçosos e desvairados, mais deletérios para a vida social do que os micróbios da tuberculose e da sífilis são para a beleza e a saúde física do corpo. Gramsci batia-se pela afirmação de uma nova cultura, a qual deveria revestir um novo senso moral que devia estar intimamente ligado a uma nova intuição da vida, até ela se tornar uma nova forma de sentir e ver a realidade. António Guerreiro, por seu lado, denuncia como atualmente “a palavra ‘cultura’ tem uma plasticidade viscosa, uma vastíssima amplitude polissémica”. Deste modo, tanto pode abrigar “a lírica camoniana como o festival da canção, compreende tanto um colóquio para festejar o centenário de algum escritor, como uns divertimentos ligeiros, às vezes alarves, servidos pela televisão ou em streaming; é tanto a herança transmitida, o património, como o que se está a produzir no momento, ao sabor das contingências e em resposta aos mais efémeros tropismos. “Cultura”, acrescenta ele, é o supremo “significante flutuante” do nosso tempo. Ora, quando na conferência de imprensa online em que o inquérito foi apresentado se diz que este “estudo pioneiro” representa um “sonho” de várias gerações de gestores culturais, sociólogos, artistas e mesmo políticos, permitindo contribuir para delinear políticas públicas de cultura mais informadas e inovadoras, bem como ajudar as instituições culturais a encontrarem novas grelhas de leitura dos seus públicos, o que os três coordenadores, José Machado Pais, sociólogo cultural, Pedro Magalhães, especialista em inquéritos à população (ambos do ICS), e Miguel Lobo Antunes, ex-gestor e programador cultural, estão, no fundo, a fazer é legitimar um quadro de leitura que se submete à lógica quantificadora que, desde logo, entende que o fenómeno cultural pode ser subsumido à função do consumo, e que continua a rebaixá-la como outra província da economia. Em declarações ao Público, Miguel Lobo Antunes vinca que “a pedra de toque aqui é justamente tratar-se de um retrato não da oferta mas da procura cultural”. O problema é que este “retrato” apenas nos afunda mais numa forma de cegueira, confirmando os preconceitos revestidos por essa fórmula para a legibilidade do mundo, essa hegemonia numérica que exclui do nosso horizonte qualquer proposta que passe por um desmantelamento das estruturas que garantem que a cultura continua investida na produção de anestesiantes, passando a funcionar como um clarim preparando os nervos para uma guerra que faça estalar de vez esta paz podre que tem permitido o triunfo deste panculturalismo anémico e que serve apenas para abolir todos os esforços de uma comunidade para mudar a sua sorte. Se assim não for, reforça-se a noção defendida por Alain Brossat, quando nos diz que “a cultura não é o que nos defende da barbárie e deve ser defendida contra ela, é antes o próprio ambiente em que as formas inteligentes da nova barbárie prosperam”.