À falta de mais e melhores notícias, mas nem por isso sem consequências perigosas, o país assistiu a um empolamento mediático de uma discussão inédita sobre a legitimidade institucional de algumas forças políticas, hoje representadas no parlamento.
Por desconhecimento manifesto, ou por má fé evidente, em alguns desses pobres debates mediáticos assistiu-se à tentativa de comparar o incomparável.
Procurou-se neles, como argumento supremo, mas demagógico, sopesar o apego à democracia das novas forças políticas, que hoje se situam num extremo do leque partidário, com o de outras que, precisamente, se encontram, há muito tempo, no extremo oposto.
Para além do chocante esquecimento histórico do papel que estas últimas tiveram – e as outras não – na resistência à ditadura e do contributo único e decisivo que deram para, derrubando-a, termos hoje a Democracia que temos, na maioria dos debates foram esquecidas as posições que as diferentes forças políticas tiveram na aprovação da nossa Constituição.
Ora, é a Constituição Portuguesa, e a posição que ante ela se teve e se tem hoje, que, precisamente, constituem as linhas de demarcação que melhor refletem a legitimidade política institucional ante o regime instituído com o 25 de Abril.
Não deixa, assim, de ser importante e educativo recordar quais foram essas posições.
Isso pode, aliás, ser feito facilmente através da consulta na net do seguinte sítio: https://app.parlamento.pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/med01040337j.html
Resumidamente, constataremos então que, mais à direita, votou favoravelmente a Constituição o PSD, e que esse partido e muitos dos seus deputados fizeram declarações de voto de elogio e apego aos princípios e disposições do texto constitucional, que aprovaram.
À esquerda, foram o Partido Socialista, o Partido Comunista Português, o Partido do Movimento Democrático Português e a União Democrática Popular que votaram favoravelmente o texto da Constituição.
Todos estes partidos e alguns dos seus deputados fizeram, também, declarações de voto sobre o sentido da sua aprovação.
Na verdade, apenas um partido com representação parlamentar – o CDS – votou contra o texto constitucional, explicando, todavia, em declaração de voto por que o fazia.
Nessa sua declaração, o representante do CDS afirmou, com clareza, o seguinte:
«O CDS orgulha-se de ter contribuído para que a Constituição da República integre e confira realidade normativa a estes princípios que alteram o curso da nossa história, rompem definitivamente com um passado de opressão e abrem para os Portugueses os espaços da justiça e da solidariedade.
(…)
O nosso voto é na essência do 25 de Abril, no reconhecimento efetivo da sua grandeza histórica, um voto revolucionário!
(…)
De forma solene e inequívoca queremos, todavia, afirmar, sem ambiguidades e com toda a força moral e política, que respeitaremos sempre a Constituição da República Portuguesa. Queremos afirmar que, apesar das nossas discordâncias políticas, seremos perfeitamente capazes de exercer o Governo com esta Constituição, se a tal formos chamados pelo voto popular.
Queremos afirmar a nossa recusa de ver a Constituição transformada num pomo de discórdia ou de novas divisões entre os Portugueses. Queremos afirmar que estaremos, sempre, do lado daqueles que, como nós, apostam na defesa intransigente e firme da legalidade democrática contra todas as tentativas ditatoriais ou autoritárias de tomada ou exercício do Poder.»
Tal declaração permitiu a esse partido e aos seus deputados, mesmo tendo votado contra a Constituição, integrarem, daí em diante, de forma legítima e coerente, a vida e as instituições democráticas.
Foi por tais razões que, desde então e até agora, não se discutiu a legitimidade, tanto dos deputados dos partidos presentes na Constituinte como daqueles que lhes sucederam, de integrarem as instituições democráticas, a começar, desde logo, pelos cargos que a Assembleia da República prevê.
A legitimidade de tais deputados para serem escolhidos, ou não, para esses cargos e funções nunca se fundou, portanto, no seu posicionamento político, mais à direita ou mais à esquerda, mas antes no apego que manifestaram aos princípios da Constituição fundadora do regime democrático.
Fazer, pois, comparações e espúrias entre os que, com opiniões distintas, respeitam e sempre se colocaram alegadamente ao lado da Constituição e dos seus princípios e valores, e alguns daqueles que, num dos extremos do recente leque partidário, integram hoje, à direita, a Assembleia da República não faz qualquer sentido.
Como referi, a pedra de toque que distingue e diferencia o campo de uns e de outros é o do comprometimento sem reservas com a Constituição.
Os partidos do arco constitucional integram um campo – sejam eles mais de direita ou mais de esquerda – os outros integram outro campo bem distinto.
É esta – e não outras – a divisão clara e totalmente significativa em termos políticos, que os distingue.
É por sua causa que se devem estabelecer os novos protocolos e etiquetas – mais formais ou mais informais – de relacionamento entre responsáveis políticos e os deputados do arco constitucional, e os que a ele não pertencem, nem querem pertencer.
Relembrar esta relevante diferença a jornalistas e comentadores parece, pois, fundamental por forma a evitar equívocos históricos e demagogias oportunistas e perigosas que deslustram a nossa democracia e apenas abrem portas aos que a querem terminar.