Nos termos do art. 147º da Constituição, a Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, independentemente de os mesmos se encontrarem ou não recenseados no território nacional.
Apesar disso, existe claramente uma discriminação dos cidadãos emigrantes, uma vez que, independentemente do seu número, os mesmos apenas podem eleger quatro deputados, dois pelo círculo da Europa e outros dois pelo círculo de fora da Europa.
Efectivamente, o art. 149º, nº2, da Constituição apenas determina que o número dos deputados seja proporcional ao número dos cidadãos inscritos nos círculos eleitorais do território nacional, deixando assim de fora os círculos da emigração. Talvez por esse motivo, apesar de haver mais 1,4 milhões de cidadãos recenseados no estrangeiro, a participação eleitoral em 2019 foi apenas de 12,05% na Europa e 8,8% fora da Europa.
Em 2022, no entanto, a participação eleitoral aumentou significativamente, tendo sido recebidos 195.701 votos na Europa (20,67%) e 64.534 fora da Europa (8,81%). No entanto, na Europa 157.205 votos foram considerados nulos, o que corresponde a mais de 80% dos votantes. A explicação que foi dada para o efeito é a de que em algumas mesas foram validados votos que não vinham acompanhadas da cópia do documento de identificação do eleitor e que esses votos teriam depois sido misturados com os votos válidos na urna, o que levou à anulação de todos os votos em dezenas de mesas, por já não ser possível distinguir os votos válidos dos inválidos após a mistura.
Efectivamente, o art. 79º-G, nº6, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República exige que, no caso de voto postal de cidadãos emigrantes, seja anexada uma fotocópia do documento de identificação, o que bem se compreende, dado que a identificação do eleitor é obrigatória. Por esse motivo, o art. 98º, nº4, da mesma Lei refere que se considera nulo o voto postal que não respeite aquela disposição.
Parece, no entanto, que apesar dessa regra, estava a haver casos em que se aceitavam votos postais sem a cópia do documento de identificação, o que contraria frontalmente a lei. Estranhamente, no entanto, o Ministério da Administração Interna fez sair um comunicado referindo “deplorar” a anulação dos votos e que teria havido uma “ata da primeira reunião, elaborada pelos delegados dos partidos”, da qual “resulta que estes acordaram em aceitar os boletins de voto independentemente de virem ou não acompanhados de cartão de cidadão/bilhetes de identidade – uma opção que a própria CNE subscreveu numa deliberação aprovada em outubro de 2019”.
A verdade, no entanto é que, apesar da sua transcrição parcial, não nos parece que isso resulte da deliberação da CNE de 15/10/2019, acessível em https://www.cne.pt/sites/default/files/ dl/2019ar_arcv_deliberacoes_cne.pdf, uma vez que esta expressamente refere no fim que “se o voto nestas condições se há-de ter por nulo deve para o efeito considerar-se exercido e, logo, ser previamente descarregado”. Nesse mesmo endereço electrónico encontra-se, aliás, uma outra deliberação da CNE de 11/10/2019 em que esta refere expressamente ser nulo o voto em que falte o referido documento de identificação.
Sendo essa a solução óbvia da lei, é manifesto que os votos postais em que falte o documento de identificação têm que ser anulados já que, mesmo que tivesse ocorrido algum acordo dos delegados ou deliberação da CNE em sentido contrário, nunca os mesmos se poderiam sobrepor à Lei Eleitoral, que tem que ser integralmente respeitada. O que é extremamente preocupante é, no entanto, o facto de a anulação de votos nulos ter levado a que não tivessem sido considerados votos válidos. E estando-se a falar de 80% dos votantes, pode ser posto em causa a regularidade de todo o processo eleitoral na emigração.
Depois de toda a confusão que se verificou com o voto nos consulados temos agora uma enorme perturbação no apuramento e contagem dos votos postais dos nossos cidadãos emigrantes. A questão que se coloca é, no entanto, a da assunção das competentes responsabilidades por toda esta situação. Mas já se sabe que em Portugal a culpa morre sempre solteira.