Enquanto um laivo de tristeza passava sobre Lisboa como uma nuvem, com a morte de uma menina de quatro anos afogada no lago que havia no Castelo de São Jorge, as preocupações debruçavam-se sobre o rio e estendiam-se à outra margem. A confusão generalizava-se em Cacilhas. E porquê? Boa pergunta. Porque com o decorrer dos anos todo o trânsito acumulado naquele pequeno espaço portuário estava a tornar-se caótico. O movimento rodoviário, que acompanhava os horários dos cacilheiros, estava sem ordem nem tino. É verdade que, à custa de um valente assoreamento, se tinha conquistado uma razoável fatia ao Tejo. Mas isso não resolvera o problema. Nem de perto nem de longe. Havia agora um parque de estacionamento mas, por exemplo, os serviços de autocarros tornara-se anacrónico por completo. Chegadas e saídas já não obedeciam a horários. Era um ver se te avias! Pelo caminho, como sempre acontece neste país de doutores e engenheiros, cada um ia dando o seu bitaite. Solução é que zero! Zero absoluto!
Lançava-se um alerta pela comunicação social. Resolva-se o problema de Cacilhas! Todos a Cacilhas para salvar a terriola que corria o risco de um acidente vascular cerebral, de tal ordem estavam entupidas as suas vias respiratórias e a sua normal circulação sanguínea. A carreira para Almada entrara num caos. Passageiros acumulavam-se como sardinhas ou cavalas em lata, sacolejavam pelo caminho apertados uns contra os outros, e então o naco entre Cacilhas e Torcatos ia ficando intransitável às horas de ponta. “Além de cenas ridículas e pouco edificantes que se oferecem a quantos observam e comentam o inesperado espetáculo, prejudica-se bastante os milhares de utentes que utilizam aqueles transportes”, comentava um crítico indignado. Que cenas eram essas? Pois nanja que o testemunho fosse ao pormenor. Ficava-se por aquele assustador do pouco edificantes que dava para apavorar hipopótamos, se os houvesse no rio.
A Outra Banda Lisboa estendera-se para lá das suas fronteiras antigas. A Outra Banda, como os alfacinhas lhe chamavam, parecia a Banda do Chico Buarque com gente à toa na vida. Da Direção-Geral de Transportes, vinha a solução mais evidente: “Aumentar o número de viaturas entre Cacilhas e Almada, modificando-se o trajeto da linha que serve o bairro dos Torcatos de modo a tornar a viagem mais curta e, por isso, mais rápida”. Mas seria funcional? Então já não havia trânsito que chegasse e sobrasse? De tal forma que, na visão do outro, se assistiam a cenas pouco edificantes? Calma que se apresentou outra opção: mudança do local de embarque por forma a que, com mais espaço, pudesse haver a indispensável disciplina de movimentos, com a disposição de bichas ou de outros procedimentos práticos. Isto é, arranjava-se maneira de pôr um ponto final à balda dos que iam correndo para os barcos, ou a sair deles, e enfileirava-se o povo para lhe controlar os instintos desatinados.
“O problema interessa prioritariamente à população de Almada”, arriscou um engenheiro mais sabedor. “Convém, portanto, que o município e a empresa concessionária entrem em acordo de forma a estudar as providências adequadas e capazes de resolver uma situação inaceitável que a todos aborrece e a ninguém aproveita”. Palavras sem dúvida sábias, mas de conversas estavam os utentes fartos até às orelhas. Queriam era sair dos seus empregos em Lisboa e porem-se em casa, na Outra Banda, o mais depressa que conseguissem.
Escusado será dizer-se que o assunto ficou longe de ser resolvido logo aí. Muita água correu do Tejo para o mar, muitos discursos caíram em saco roto, muito palavrório se deitou fora pelo caminho. Os protestos dos passageiros subiram de tom com o passar do tempo. Afinal sempre se faziam muitas despesas desnecessárias, ou não? É que um mamífero, para se deslocar da Cova da Piedade até á sede do concelho, precisava de chegar a Cacilhas a fim de tomar outro autocarro até Almada e sempre desembolsava, no percurso, dois escudos e vinte centavos. E que era dinheiro, lá isso era, que diacho!